*Esta reportagem foi publicada originalmente em 8 de julho de 2022
A história paulista recorda em 9 de julho a Revolução Constitucionalista de 1932, mas o 9 de julho que permitiu que a cidade de São Paulo existisse aconteceu muito antes, em 1562 — 462 anos atrás.
Foi quando ocorreu o episódio que entraria para a história como o Cerco de Piratininga, uma guerra indígena contra a incipiente vila que constituía o núcleo da futura maior cidade brasileira.
O que ocorreu foi uma guerra entre povos indígenas, mais especificamente entre aqueles que haviam firmado alianças com os portugueses colonizadores e aqueles que eram contrários a esses acordos.
De acordo com o historiador Afonso D’Escragnolle Taunay (1876-1958), indígenas das tribos guarulhos, guaianás e carijós firmaram uma coligação e lutaram contra a aliança formada pelo grupo liderado pelo tupiniquim Tibiriçá (? – 1562) e os padres jesuítas que ocupavam o planalto paulista.
Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), “foi um dos primeiros conflitos abertos envolvendo o uso e a ocupação da terra e as relações sociais entre interesses conflitantes no planalto paulista: Igreja Católica, colonos, autoridades coloniais, lideranças indígenas e grupos indígenas.”
Conforme narrou, em carta, o padre José de Anchieta (1534-1597), o ataque dos indígenas ocorreu, de forma organizada, na parte da manhã. Fazia frio. O foco foi o ponto onde estava localizado o colégio dos jesuítas, exatamente onde se encontra hoje a igreja do Pátio do Colégio. Os nativos estavam “pintados e emplumados”, seguindo a tradição dos mesmos em episódios de guerra.
Eles gritavam palavras de ordem, em tupi, como “morte aos brancos” ou “morte aos portugueses”. A operação foi liderada por um líder indígena chamado Jaguaranho (? – 1562), sobrinho de Tibiriçá.
E coube a Tibiriçá o papel de herói, para a ótica portuguesa, dessa batalha. Nas palavras do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, que narra o episódio em seu livro A Capital da Solidão, o tupiniquim se tornou o “salvador de São Paulo de Piratininga, diante do maior ataque que sofreu nos primeiros anos”.
“Isso ocorreu num mês de julho em que fazia muito frio. Os inimigos, numa coligação de índios das redondezas, alguns dos quais haviam morado na aldeia dos padres e agora a renegavam, atacaram pela manhã, pintados e emplumados, e fazendo grande alarido”, pontua o jornalista em seu livro.
“Entre eles vinham inclusive membros da família de Tibiriçá, de modo que a guerra ganhou a feição de terrível luta fratricida”, aponta Toledo.
De acordo com texto de José de Anchieta, houve encontros, “às flechadas, de irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios”.
Tibiriçá e a guerra
Hábil nas articulações, Tibiriçá já antevia o ataque e formou um pequeno exército, recrutando integrantes de três aldeias vizinhas para defender a vila e a comunidade formada então por 12 padres jesuítas.
Foram dois dias em que a futura cidade de São Paulo ficou cercada. Por fim, as tropas de Tibiriçá levaram a melhor. Um dos inimigos, prisioneiro, pediu perdão para os padres e disse que aceitaria ser feito escravo. Tibiriçá não se fez de rogado: com uma espada, conforme relato de Anchieta, matou-o com um golpe que esfacelou seu crânio.
O padre jesuíta enaltece o papel do líder indígena aliado dos portugueses. Coloca-o no papel de “fundador e conservador da Casa de Piratininga”.
Era um momento tumultuado aquele no planalto paulista. A vila de Santo André da Borda do Campo, primeira aglomeração europeia na América portuguesa longe do litoral, havia sido fundada em 1553 graças, principalmente, às alianças garantidas pelo explorador João Ramalho (1493-1582), que se casou com a filha do cacique Tibiriçá e iniciou uma verdadeira dinastia de mamelucos.
Mas Santo André vivia sob constantes ataques dos índios tamoios e, por volta de 1560, a aglomeração portuguesa que ali existia acabou não resistindo. Homem poderoso daquelas cercanias, Ramalho acabou se transferindo, junto aos seus familiares, para a região do Pátio do Colégio. Ali acabou nomeado capitão-mor.
Geograficamente, era uma região mais protegida. Para historiadores, a Vila de São Paulo de Piratininga, na verdade, deve sua gênese à transferência do núcleo europeu da Vila de Santo André da Borda do Campo.
Mas essa nova configuração fez com que ocorresse uma acomodação das lideranças, tanto com os padres jesuítas que já haviam estabelecido um colégio para catequizar índios no planalto paulista, como com as tribos indígenas do entorno.
Batalhas coloniais
Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o historiador José Carlos Vilardaga recorda que esses ataques a núcleos coloniais eram constantes no período e, portanto, foi graças “à vitória dessa aliança de uma parte dos indígenas com padres e colonos que a sobrevivência material do núcleo que daria origem à São Paulo sobreviveu”.
“A forma com que depois ali se tornaria a cidade de São Paulo, de alguma maneira, ocorreu a partir da vitória desses aliados. Não era nada extraordinário nem fora do contexto o abandono de vilas no período colonial, tanto na América portuguesa quanto na espanhola [por conta de animosidades com os nativos]. A permanência ou não de um núcleo colonial nos primeiros anos de colonização era exatamente a consequência do sucesso ou insucesso com alianças firmadas com os grupos indígenas locais”, explica Vilardaga, citando o fracasso da vila de Santo André da Borda do Campo como um exemplo disso.
“Algo inimaginável nos dias de hoje, os ataques indígenas à Vila de São Paulo na época de sua fundação, pelos idos de 1560, foi uma constante”, complementa o historiador Luís Soares de Camargo, diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo. “Conflitos, escaramuças, ou até graves confrontos ocorriam constantemente face à chegada e estabelecimento dos portugueses no território de Piratininga que, até então era ocupado pelos indígenas que viviam no planalto.”
“Santo André, a primeira Vila do Planalto fundada em 1553, sofreu com o problema de segurança e foi extinta em 1560, sendo os seus moradores transferidos para São Paulo, cuja criação datava de 1554, mas que foi elevada à Vila naquele mesmo ano”, explica Camargo. “Questões ligadas aos ataques indígenas e, portanto, à segurança, estavam norteando aquelas ações.”
O historiador comenta que quando a vila de Santo André foi extinta, “o foco das tensões” também acabou transferido para São Paulo, “então sede do poder político dos portugueses representado pela Câmara Municipal, e também da esfera religiosa através dos jesuítas representantes da Igreja Católica.”
“Marco visual dessa esfera de poder era a igreja dos jesuítas no Pátio do Colégio que, não por outra razão, foi a escolhida em 1562 pelos índios revoltosos para ser destruída”, afirma ele.
Segundo Vilardaga, o núcleo que daria origem a São Paulo só se firmou de forma mais consolidada a partir de 1590.
Protagonismo indígena
Professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), o historiador Paulo César Garcez Marins enfatiza a importância de compreender o episódio de forma a reconhecer o protagonismo dos indígenas. “Essas narrativas acabaram todas construídas para, no fundo, fortalecer a ideia de adesão dos indígenas à esfera da invasão portuguesa”, comenta ele. “Estão impregnadas desse ponto de vista.”
Vilardaga frisa que o ocorrido “foi uma guerra indígena”. “Isso é o mais importante”, diz ele. “Mudar o olhar sobre o episódio, que acabou marcado por uma exaltação do Tibiriçá e do João Ramalho na mitologia paulista, além da santidade do Anchieta. Houve toda uma construção narrativa a partir do evento.”
O historiador ressalta que é preciso compreender o Cerco de Piratininga como o ponto de tensão entre as “redes de relações e alianças” firmadas entre as próprias populações indígenas da região, com seus “grupos, amizades e articulações”. Os acordos firmados pelos padres e pelos colonos, naquele momento, acaba “obrigando novas estratégias e formas de os indígenas que já viviam ali se entenderem nessas redes de relações”.
Nesse sentido, a chegada e a instalação dos portugueses no local acabou, como explica Vilardaga, “causando ondas de choque e tensionando as relações indígenas”. E a animosidade deles ocorre em um momento em que os povos nativos eram imensa maioria. “A população branca era muito pequena. Por isso o que houve foi um conflito indígena, uma guerra entre uma parcialidade tupinquim e outra parcialidade tupiniquim. Entre aparentados. E o que estava em jogo ali eram as alianças”, contextualiza o professor.
Para o historiador Camargo, é possível definir como sendo três os grupos “envolvidos na revolta de 1562”: os jesuítas evangelizadores, empenhados na tal conversão dos chamados “naturais da terra”; os colonizadores portugueses, “mais interessados na ocupação das terras e na escravidão indígena”; e os indígenas que se colocavam em posição de resistência ante os europeus.
No caso, os indígenas que não haviam firmado alianças com os brancos, evidentemente.
“Nenhum dos grupos eram coesos, havendo por certo diferenças internas entre eles”, atenta Camargo. “No caso dos índios, por exemplo, haviam os que aceitaram a interferência dos portugueses, aliando-se a eles, e outros totalmente contrários a essa expansão.”
O historiador ainda lembra que o episódio marcou a “união de tribos contrárias, por motivos religiosos ou civis, aos portugueses”. E isso possibilitou a guerra. Para esses indígenas, era preciso conquistar a vila de São Paulo e a igreja dos jesuítas — marcos político e simbólico da invasão portuguesa.
Martinez analisa o episódio como o fator de consolidação dos “interesses da colonização portuguesa”, selando “a sorte das populações indígenas no entorno dos campos de Piratininga”.
“Os anos posteriores foram a projeção no tempo e no espaço de relações de poder, da apropriação da terra e do emprego e controle da mão de obra indígena, a morte dos insubordinados”, acrescenta Martinez.
“A herança maldita, sem dúvida, foi o consenso no âmbito das autoridades reais, militares e eclesiásticas quanto às formas de tratamento social, a elaboração e consagração de um discurso sobre os povos indígenas e os mestiços: a legitimidade da sua submissão, do trabalho forçado, da desagregação comunitária dos povos nativos , da violência sistemática, da expropriação de terras e da diluição de identidades étnico-culturais, entre outras.”
“Hoje, podemos compreender o episódio como fecundo definidor de relações e de representações simbólicas de poder e de autoridades laicas e religiosas na constituição do domínio colonial e da subjugação das populações nativas”, acrescenta o professor da Unesp.
“Fenômeno que se multiplicou ao longo do tempo e em distintas localidades, conforme o ritmo e a intensidade da evangelização e da ocupação territorial colonial na penetração do vasto interior.”
Para Martinez, isto pode ser observado em outros episódios “consagradores da opressão, da violência e da exploração econômica de populações e regiões pelo Brasil afora”.
“Veja a história do bandeirismo, da marcha do café e da marcha para o oeste, da ocupação predatória da Amazônia, entre outros exemplos que traçaram o curso da tragédia social verde e amarela”, comenta.
Uma vila em ponto seguro
“O Cerco de Piratininga foi o grande teste para se verificar a segurança da Vila de São Paulo e, por conseguinte, a sua viabilização como núcleo permanente da colonização”, pontua Camargo.
“Explica-se: a questão de segurança foi o principal fator para a escolha do local onde seria constituída a nova Vila, uma vez que Santo André mostrou-se por demais vulnerável.”
“E aqui uma curiosidade, pois sempre se costuma dizer que São Paulo nasceu e cresceu sem planejamento, o que é errado. Ou, pelo menos no seu nascimento, São Paulo foi muito bem planejada, não nos moldes modernos como temos hoje, mas sim no contexto daquela época onde se vivia em constante sobressalto com a ameaça dos índios revoltosos”, acrescenta o historiador.
“Sob esse aspecto, o local era perfeito: uma colina cercada por dois rios, o Tamanduateí e o Anhangabaú, com pontos dominantes de onde se tinha uma ampla visão da área ao redor: o Pátio do Colégio, de cujo topo se vislumbrava ampla área à leste, ou o atual Largo de São Bento, de onde se tinha uma ampla visão da zona norte e oeste”, afirma ele. “Essa localização do núcleo proporcionava mais segurança que foi complementada com a construção dos ‘muros’ em volta da cidade, a exemplo das antigas cidades europeias. Aqui, porém, não eram muros de pedra e sim de taipa ou simples paliçadas.”
Segundo Camargo, tudo isso contribuiu para a resistência do núcleo frente à batalha daquele 9 de julho de 462 anos atrás.
“Apesar dessas defesas terem sido ultrapassadas no ataque e ter ocorrido a invasão da igreja, logo as forças conseguiram alvejar o líder Jaguaranho, o que causou uma desestabilização entre os índios revoltosos e a vitória dos portugueses que foram auxiliados por índios simpatizantes.”
“Tal vitória foi fundamental para a consolidação do núcleo paulistano que, daí por diante, firmou-se como principal cidade e capital”, explica.
“Nesse sentido, o episódio ganhou relevância na história, pois ao contrário de Santo André, que não sobreviveu, São Paulo conseguiu através desse ataque uma vitória muito importante que fortaleceu e mostrou que o núcleo era viável naquele contexto violento. Para se ter uma ideia dessa posição estratégica e também do ataque de 1562, o melhor ponto a ser visitado é o próprio Pátio do Colégio e nele o seu jardim ao fundo. Desse ponto descortina-se uma vista da zona leste da cidade por onde começou o ataque, bem como a configuração desta área: uma íngreme colina por onde os índios subiram para atacar a cidade.”
bbcnews.com