Mais de 100 pessoas morreram em meio à onda de protestos que tomou conta de Bangladesh – 50 mortes foram registradas apenas na sexta-feira (19/7).
O principal motivo das manifestações são as cotas de empregos no setor público. Um terço das vagas é reservado para parentes de veteranos da guerra de independência do país contra o Paquistão em 1971.
O sistema de cotas, abolido em 2018 pelo governo da Primeira-Ministra Sheikh Hasina, foi restabelecido por um tribunal no mês passado.
Os protestos começaram de forma pacífica em campus universitários, mas rapidamente se transformaram em um movimento de descontentamento nacional.
Na sexta-feira (19/7), manifestantes incendiaram uma prisão e libertaram centenas de detentos. Também invadiram e destruíram parte da sede da emissora de TV estatal BTV.
O governo impôs um bloqueio sem precedentes na comunicação, desligando a internet e restringindo os serviços de telefonia, além de decretar um toque de recolher nacional.
Como resultado, a Suprema Corte de Bangladesh anunciou a anulação da maioria das cotas para empregos no governo.
A decisão da determina que 93% dos empregos no setor público sejam preenchidos com base no mérito, deixando 5% para os familiares dos veteranos da guerra de independência do país. Os 2% restantes são reservados para pessoas de minorias étnicas ou com deficiências.
As ruas da capital, Dhaka, estão desertas devido ao segundo dia de toque de recolher, mas há relatos esporádicos de confrontos em algumas áreas. Há também relatos não confirmados de que alguns líderes foram presos.
Como os protestos se espalharam
Manifestações nas ruas não são novidade para esta nação sul-asiática de 170 milhões de pessoas – mas a intensidade das demonstrações que começaram na semana passada tem sido descrita como a pior na história recente do país.
Milhares de estudantes universitários têm protestado há semanas contra o sistema de cotas para empregos no governo.
Os estudantes argumentam que o sistema é discriminatório e pedem um recrutamento baseado no mérito.
Os coordenadores dos protestos dizem que a polícia e o setor estudantil do partido governante Awami League – conhecido como Liga Popular de Bangladesh – têm usado força brutal contra os manifestantes pacíficos, desencadeando uma ampla revolta.
O governo nega essas alegações.
“Não são mais apenas os estudantes, parece que pessoas de todas as classes sociais se juntaram ao movimento de protesto,” diz Samina Luthfa, professora assistente de sociologia na Universidade de Dhaka, à BBC.
Embora Bangladesh seja uma das economias que mais cresce no mundo, especialistas apontam que esse crescimento não se traduziu em empregos para os estudantes saídos de universidades.
Estimativas sugerem que cerca de 18 milhões de jovens estão procurando emprego em Bangladesh.
Pessoas com graduação enfrentam taxas de desemprego mais altas do que seus colegas com menor escolaridade.
Bangladesh se tornou uma potência na exportação de roupas prontas para uso. O país exporta cerca de US$ 40 bilhões (R$ 225 bilhões) em roupas para o mercado global.
O setor emprega mais de 4 milhões de pessoas, muitas delas mulheres. Mas os empregos em fábricas não são suficientes para a geração jovem que esperava um futuro melhor.
Sob o governo da primeira-ministra Sheikh Hasina, que está no poder há 15 anos, Bangladesh se transformou.
Novas estradas, pontes, fábricas e até mesmo um metrô na capital, Dhaka, foram construídos. A renda per capita triplicou na última década, e o Banco Mundial estima que mais de 25 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza nos últimos 20 anos.
Mas muitos dizem que parte desse crescimento está ajudando apenas aqueles próximos ao partido Awami League, da primeira-ministra Sheikh Hasina.
A professora Luthfa afirma: “Estamos testemunhando muita corrupção. Especialmente entre aqueles próximos ao partido no poder. A corrupção tem continuado há muito tempo sem ser punida.”
Nas redes sociais de Bangladesh, nos últimos meses, dominaram as discussões sobre alegações de corrupção envolvendo alguns dos antigos altos funcionários de Hasina – incluindo um ex-chefe do exército, ex-chefe da polícia e oficiais de recrutamento do Estado.
Na semana passada, a primeira-ministra afirmou que estava tomando medidas contra a corrupção e que esse era um problema de longa data.
Durante a mesma coletiva de imprensa em Dhaka, ela disse que tomou providências contra um empregado doméstico após ele supostamente acumular US$ 34 milhões (R$ 190 milhões).
“Como ele ganhou tanto dinheiro? Tomei providências imediatamente após saber disso.”
Ela não identificou o indivíduo.
A reação da mídia de Bangladesh foi de que esse montante de dinheiro só poderia ter sido acumulado por meio de lobby para contratos governamentais, corrupção ou suborno.
A comissão anticorrupção de Bangladesh lançou uma investigação sobre o ex-chefe de polícia Benazir Ahmed – uma vez visto como um aliado próximo de Hasina – por acumular milhões de dólares, supostamente por meios ilegais. Ele nega as alegações.
Essa notícia não passou despercebida pelos cidadãos comuns do país, que estão lutando com o aumento dos custos de vida.
Além das alegações de corrupção, muitos ativistas dos direitos humanos apontam que o espaço para a atividade democrática encolheu nos últimos 15 anos.
“Em três eleições consecutivas, não houve um processo eleitoral livre, justo e com credibilidade”, disse Meenakshi Ganguly, diretora da ONG Human Rights Watch para o Sul da Ásia, à BBC.
“[Hasina] talvez tenha subestimado o nível de insatisfação das pessoas por terem sido negadas o direito democrático mais básico de escolher seu próprio líder,” disse Ganguly.
O principal partido de oposição, o Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP), boicotou as eleições em 2014 e 2024, alegando que eleições livres e justas não eram possíveis sob o comando de Sheikh Hasina e que queriam que as eleições fossem realizadas sob cuidados de uma administração neutra.
Grupos de direitos humanos também afirmam que mais de 80 pessoas, muitas delas críticas ao governo, desapareceram nos últimos 15 anos, e suas famílias não têm informações sobre elas.
O governo é acusado de sufocar a dissidência e a mídia, em meio a preocupações mais amplas de que Sheikh Hasina se tornou cada vez mais autocrática ao longo dos anos. Mas os ministros negam as acusações.
“A raiva contra o governo e o partido no poder tem se acumulado há muito tempo”, diz a professora Samina Luthfa. “As pessoas estão mostrando sua raiva agora. As pessoas recorrem a protestos se não tiverem nenhum recurso restante.”
Os ministros de Hasina dizem que o governo mostrou extrema contenção nos protestos, apesar do que descrevem como ações provocativas por parte dos manifestantes.
Eles afirmam que as manifestações foram infiltradas pela oposição política e por partidos islâmicos, que, segundo eles, iniciaram a violência.
O Ministro da Justiça, Anisul Huq, disse que o governo estava aberto a discutir as questões. “O governo tem buscado dialogar com os estudantes. Quando há um argumento razoável, estamos dispostos a ouvir,” disse Huq à BBC no início desta semana.
Os protestos estudantis são provavelmente o maior desafio que a primeira-ministra Hasina enfrentou desde janeiro de 2009.