Nenhum outro animal definiu a sexualidade feminina sob a perspectiva masculina ocidental como os gatos. Mulheres bonitas e atraentes são chamadas de “gatas”; e não é raro ouvir que são “felinas” — sexualmente provocantes.
O outro lado deste estereótipo é o clichê desprovido de sexualidade da “mulher solteira que vive com gatos”. E como os comentários feitos em 2021 pelo companheiro de chapa de Donald Trump, J.D. Vance, vieram à tona novamente recentemente, parece que a alegoria da “tia dos gatos” está bastante viva.
O estereótipo da “tia dos gatos” (ou cat lady, em inglês) é baseado na “solteirona“; uma mulher sem um homem, ou uma abreviação para lésbica. Em sua forma mais comum, ela é retratada como uma mulher reclusa de óculos e casaquinho — e que possui pelo menos um gato, se não vários.
Como Alice Maddicott, autora de Cat Women: An Exploration of Feline Friendships and Lingering Superstitions (“Mulheres-gato: uma exploração de amizades felinas e superstições remanescentes”, em tradução livre), diz à BBC, os vínculos históricos entre mulheres e gatos têm origem em muito tempo atrás, e são acompanhados por uma dicotomia persistente entre o hipersexual e o não-sexual.
A mulher de Bath, personagem dos contos de Geoffrey Chaucer, por exemplo, foi chamada de gata “para insultá-la e sugerir que era promíscua”, explica Maddicott. Em outras palavras, “ser uma ‘tia dos gatos’ faz você perder a sexualidade, mas o gato também pode ser usado como um insulto referindo-se à promiscuidade e à luxúria”.
Não é algo tão impensável; basta lembrar do termo contemporâneo em inglês cougar — que significa “puma” —, usado para descrever mulheres que namoram homens mais jovens.
A associação entre mulheres e gatos é mais antiga e mais difundida. No antigo Egito, onde os gatos foram domesticados há quase 10 mil anos, uma deusa metade gato, metade humana, Bastet, era reverenciada como a deusa da domesticidade, da fertilidade e do parto.
Ela protegia a casa de espíritos malignos e doenças e, como acontecia com a maioria das divindades egípcias, também desempenhava um papel na vida após a morte como guia e ajudante dos mortos. Na época greco-romana, surgiram interpretações de Bastet como Ártemis (Grécia) e Diana (Roma), sendo sua ligação com os gatos ainda visível, embora em menor grau.
Elas assumiram formas humanas, com Ártemis ainda intimamente ligada aos gatos, e Diana se transformando em gato (especificamente no poema Metamorfoses, de Ovídio, quando os deuses romanos fugiram para o Egito).
Na Europa, talvez o exemplo mais proeminente esteja na mitologia nórdica: Freyja, a deusa da fertilidade, do amor e da sorte, andava numa carruagem levada por dois gatos machos.
Na China antiga, o controle de pragas e a fertilidade eram atribuídos à deusa-gata, Li Shou.
Mas, afinal, quando foi que a associação entre mulheres e gatos — sobretudo no Ocidente — se tornou mais negativa e controversa?
As origens
A resposta, ao que parece, está no cristianismo.
“Efetivamente, mulheres e gatos em uníssono eram associados a deusas pré-cristãs”, diz Maddicott, [o que] “a Igreja teria desaprovado, e poderia ser a raiz de algumas das suspeitas que mais tarde explodiram com os julgamentos de bruxas”.
Os julgamentos de pessoas acusadas de bruxaria — em sua maioria, mulheres — resultavam em execução no caso de condenação.
No livro The Cat and the Human Imagination (“O Gato e a Imaginação Humana”, em tradução livre), Katharine M. Rogers escreve que, na Idade Média, a Igreja Católica Romana via as mulheres solteiras que andavam livremente como se fossem gatas à caça.
Mais tarde, para erradicar as crenças não-cristãs da Europa, todas as divindades não-cristãs foram consideradas malignas, e os gatos foram declarados servos de Satanás. Seguiu-se uma série de propagandas religiosas que descreviam as mulheres, os gatos ou ambos como malignos.
Em 1233, o papa Gregório emitiu o Vox in Rama, um decreto que destacava o “problema” da Europa com as religiões não-cristãs, acusando-as de participar de cultos satânicos, ao mesmo tempo em que descrevia os rituais destes cultos em detalhes minuciosos.
De acordo com Classical Cats: The Rise and Fall of the Sacred Cat (“Gatos Clássicos: A Ascensão e Queda do Gato Sagrado”, em tradução livre), de Donald W. Engels, este decreto papal deu “sanção divina para o extermínio dos gatos, especialmente os pretos, e o extermínio de suas donas mulheres.”
Quando Agnes Waterhouse foi executada no primeiro julgamento de bruxas da Inglaterra, em 1566, ela confessou que seu “familiar” (espírito sobrenatural que serve como companheiro de uma bruxa) era um gato chamado Sathan (Satanás), que mais tarde foi transformado em sapo. A mulher de 63 anos foi enforcada, forjando para sempre a conexão mulher-gato-bruxa, que chegou aos EUA e culminou nos julgamentos das bruxas de Salem.
“[Os gatos] são independentes e, muitas vezes, inteligentes — coisas que no passado, se as pessoas estivessem tentando controlar as mulheres, não gostariam que elas fossem”, observa Maddicott.
De muitas maneiras, isso perturbava a ordem hierárquica cristã da vida na Terra, onde o homem estava no topo. Katharine M. Rogers desenvolve ainda mais essa ideia, escrevendo:
“Os gatos representam convenientemente o que os homens há muito tempo se queixam amargamente nas mulheres: não obedecem e não amam o suficiente. Homens que não conseguem controlar as mulheres, que gostariam de associá-las a animais que não podem ser controlados.”
Não é de se admirar, portanto, que os gatos tenham aparecido em desenhos animados contra o sufrágio feminino nos Estados Unidos no início do século 20 para ridicularizar e diminuir o movimento das mulheres.
Essa associação entre gatos e mulheres faz parte de uma interação mais ampla entre humanos e animais, como disse à BBC Fiona Probyn-Rapsey, acadêmica da Universidade de Wollongong, na Austrália, que aborda os estudos sobre animais a partir de uma perspectiva feminista pós-colonial.
“Usamos rotineiramente tropos de animais para falar sobre gênero, e para policiar comportamentos de gênero (‘cadela’, ‘galinha’, ‘piranha’, ‘garanhão’), assim como de [raça e] racismo, que sempre faz uso de tropos de animais para desumanizar e negar a humanidade dos outros.”
‘Tia dos gatos’ na cultura popular
Enquanto as mulheres solteiras foram rotuladas de “solteironas”, criticadas por drenar as finanças dos parentes, aquelas que também eram donas de gatos eram consideradas duplamente condenadas. Na era vitoriana, esse vínculo havia permeado o meio cultural. Em 1880, o jornal The Dundee Courier declarou que: “a solteirona não seria típica de sua classe sem o gato”, e que “um não pode existir sem o outro”.
Esse estereótipo da mulher solteira que vive com gatos persistiu até o século 20, talvez atingindo seu apogeu na cultura popular em 1976, com o lançamento do documentário Grey Gardens – Do Luxo à Decadência.
O filme retrata a vida de Edith Bouvier Beale (“Little Edie”) e sua mãe, Edith Ewing Bouvier Beale (“Big Edie”) — ambas parentes de Jacqueline Kennedy Onassis —, e “Gray Gardens” era o nome da casa de 14 quartos em que moravam em East Hampton, Nova York.
A casa estava tomada por dezenas de gatos, latas de comida e lixo pelo chão, e o terreno invadido pela vegetação. O documentário era, de certa forma, uma fábula sobre o que acontece com uma mulher quando ela não tem um homem: Big Edie era divorciada, e Little Edie nunca se casou.
“[O estereótipo da ‘tia dos gatos’] ajuda a rotular as mulheres que são vistas como inaceitáveis em termos das expectativas patriarcais da sociedade”, diz Maddicott.
“As ‘tias dos gatos’ geralmente são mais velhas, solteiras e sem filhos, e a sociedade diz às mulheres que isso deve ser visto como um fracasso. Se você não seguir o que é esperado de você, pode acabar não apenas sozinha, mas se tiver gatos, não há como voltar atrás, isso vai te levar ao extremo de miséria e falta de sexualidade de Grey Gardens.”
Grey Gardens estabeleceu o modelo para as “tias dos gatos” nas décadas seguintes na telona.
Os papéis de Michelle Pfeiffer e Halle Berry como mulher-gato são um exemplo — em Batman: O Retorno (1992), Pfeiffer era uma; em Mulher-Gato (2004), Berry é, de certa forma, orientada por uma; tem ainda a Sra. Deagle, de Gremlins (1984); Eleanor Abernathy, mais conhecida como “a Louca dos Gatos”, de Os Simpsons (primeira aparição em 1988); e a participação de Robert De Niro como uma “tia dos gatos” no programa Saturday Night Live (2004). No filme Uma Aventura LEGO (2014), uma senhora é dona de cerca de 20 gatos.
As “tias dos gatos” também apareceram na literatura: idênticas às suas representações posteriores na telona. Tanto no livro quanto nas versões cinematográficas de Laranja Mecânica; como a tia Jane do professor Pringle na série Jeeves & Wooster, do escritor PG Wodehouse, e a Srta. Caroline Percehouse em O Mistério Sittaford, de Agatha Christie.
Mais recentemente, o medo — e as histórias de advertência — de gatos e mulheres que permearam a cultura popular, oferecem agora, até certo ponto, um alívio cômico. Em Gilmore Girls (2000-2007), Lorelai, recém-solteira, liga para a filha Rory quando um gato, e na sequência dois, aparecem em sua porta:
“Eles sabem. Os gatos sabem… Estou sozinha. Acho que preciso começar a colecionar jornais e revistas, encontrar um roupão de banho azul e perder meus dentes da frente.”
Da mesma forma, em um episódio de Crazy Ex-Girlfriend (2015-2019), Rebecca brinca com as amigas em um número musical sobre se tornar a “tia dos gatos” depois de ficar solteira. Em outras palavras, esta alegoria é agora, em sua maior parte, um completo clichê.
No entanto, esses estereótipos já desgastados têm uma popularidade cada vez menor hoje em dia.
As mulheres têm mais liberdade e poder para existir fora das “normas” históricas: mais mulheres estão optando por serem solteiras e não terem filhos; elas têm mais autoridade no local de trabalho, e o uso da palavra “solteirona”, que havia saído de moda, foi recentemente reivindicado pelas feministas.
Até o termo “tia dos gatos” é agora amplamente e orgulhosamente usado por muitas donas de gatos — incluindo celebridades, como Taylor Swift — nas redes sociais.
“Existem tantos exemplos maravilhosos de amizades entre mulheres e gatos sendo o que realmente são, um relacionamento positivo e normal com animais de estimação, em vez do estereótipo”, diz Maddicott.
A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris — um dos alvos dos comentários de J.D. Vance sobre a “tia dos gatos” sem filhos — não é solteira, nem tem gatos e ainda é madastra de dois enteados, mas o significado histórico, e a inferência, permanecem.
Se uma mulher — ou uma pessoa de qualquer gênero — optar por ser uma “tia dos gatos” (quer tenha um ou não), talvez a escolha de usar esse rótulo deva ser dela e somente dela.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.