Keri Bergere tem 60 anos. Ela andava de bicicleta com suas amigas em um sábado à tarde, na trilha Tokul Creek – uma área de densa floresta perto de Fall City, no Estado de Washington (Estados Unidos).
De repente, dois pumas correram na frente delas. Um dos animais sumiu no bosque, mas o outro se virou para elas e, em questão de segundos, arrancou Bergere da bicicleta.
“Não tivemos chance de encará-los para que eles ficassem assustados, nem nada”, contou sua amiga Annie Bilotta à emissora de TV local.
O jovem puma pressionou o rosto de Bergere e não largou por 15 minutos.
Suas amigas tentaram de tudo. Elas bateram nele repetidas vezes com varas, atiraram uma rocha de 11,4 kg na sua cabeça e o atingiram com uma pequena faca. Enquanto isso, Bergere cutucava o animal continuamente nos olhos e na boca.
Quando o puma finalmente a libertou por um momento, Bergere conseguiu escapar e suas amigas empurraram uma bicicleta em cima dele, mantendo o puma preso até que a ajuda chegasse.
Bergere sobreviveu, mas sofreu lesões significativas e permanentes nos nervos do rosto.
Em Haines Junction, no território canadense do Yukon, Vanessa Chaput saiu para correr com seu cão quando viu três ursos-pardos.
Como membro do povo originário Kaska, Chaput cresceu encontrando fortes predadores pela frente. Ela sabia como se afastar deles, como declarou ao canal de TV APTN News.
Mas, quando seu cão saiu da coleira, um dos ursos a atacou e prendeu as mandíbulas sobre sua cabeça. Por sorte, ela usava um prendedor de cabelo que se quebrou na boca do urso, assustando o animal o suficiente para libertá-la.
Os latidos do cão distraíram o urso por tempo suficiente para que ela corresse para a rodovia e pedisse ajuda. Chaput teve várias feridas no braço, um osso quebrado, lesões dos nervos e o tríceps rompido.
Bergere e Chaput não fizeram nada para provocar esses ataques, que foram considerados encontros inesperados. Eles ocorrem quando animais carnívoros e seres humanos se encontram por acaso e o elemento surpresa desperta o comportamento defensivo do animal.
Chris Servheen, coordenador aposentado de recuperação de ursos-pardos do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, explica que este é o tipo de ataque de ursos mais frequente, segundo suas observações.
“Normalmente, o urso tenta derrubar ou neutralizar a pessoa porque tem medo e sai correndo em seguida”, explica ele.
Servheen afirma que os ursos envolvidos neste tipo de ataque raramente são retirados ou abatidos. Mas o puma e o urso-pardo sofreram eutanásia depois de atacarem Bergere e Chaput.
Com o aumento dos conflitos entre seres humanos e animais selvagens, devido à expansão dos assentamentos humanos e à falta de recursos na natureza causada pelas mudanças climáticas, estes eventos podem se tornar cada vez mais comuns, o que prejudica os esforços de conservação de longo prazo.
Os conflitos entre os seres humanos e os animais selvagens já resultaram no extermínio de populações de lobos na Europa e nos Estados Unidos, sem falar na extinção de subespécies de tigres no hemisfério sul.
“Estes ataques chamam muito a atenção, mas, na verdade, o número de incidentes é muito baixo”, segundo o pesquisador Vincenzo Penteriani, do Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha (CSIC, na sigla em espanhol).
Penteriani é um dos autores de um estudo realizado em 2023. Segundo a pesquisa, ocorreram 5.089 ataques de grandes carnívoros em todo o mundo, entre 1950 e 2019. E apenas 32% dos incidentes resultaram em mortes de seres humanos, dois terços delas causadas por grandes felídeos, como leões e pumas.
Existem outros motivos comuns para os ataques de animais carnívoros a seres humanos. Alguns deles podem ser evitados com mais facilidade do que outros.
Os conflitos baseados em agressões naturais – como os que envolvem fêmeas protegendo suas crias ou animais protegendo seus alimentos – podem ser frequentemente evitados quando as pessoas se afastam daqueles animais ou das suas fontes de alimento.
Em relação aos carnívoros que veem nos seres humanos uma forma de conseguir alimento, esta já é outra história.
Quando os ursos se tornam mais dependentes dos alimentos humanos, encontrados em locais de acampamento ou cestos de lixo, eles deixam de fugir das pessoas. E a perda dessa reação instintiva de medo os coloca cada vez mais em situações que oferecem o risco de conflitos – que, frequentemente, resultam no abate dos ursos pelos seres humanos.
“Urso alimentado é urso morto”, afirma Servheen. Este é um ditado comum entre biólogos e conservacionistas.
Os ataques predatórios são muito raros. Eles representam apenas 17% dos ataques na América do Norte desde 1955.
Estes ataques ocorrem quando um animal carnívoro considera que o ser humano é uma presa e passa a caçá-lo como faria com qualquer outro animal que servisse de comida.
Um exemplo recente de encontro predatório foi o caso de um leão-da-montanha que matou um jovem de 21 anos e feriu gravemente seu irmão no condado de El Dorado, na Califórnia (Estados Unidos). Este foi o primeiro ataque predatório no Estado nos últimos 20 anos.
O último tipo de ataque de animais é o provocado pelas pessoas, que tiram fotos com eles ou os alimentam em ambientes naturais, como parques nacionais. Nestes casos, os animais costumam sofrer eutanásia por precaução.
“Eventualmente, aquele animal se acostuma com as pessoas e acabam acontecendo coisas ruins com ele. E as pessoas que quiseram iniciar essa conexão não necessariamente percebem isso”, explica a pesquisadora em pós-doutorado Christine Wilkinson, da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Ela estuda os conflitos entre coiotes e seres humanos.
Depois de incontáveis análises de todos os tipos de ataques de animais carnívoros a seres humanos ao longo de 75 anos, a equipe de Penteriani acredita que 50% deles poderiam ter sido evitados se os humanos reagissem de forma diferente.
Um estudo de 2017, do qual Penteriani é um dos autores, concluiu que a prática de comportamento de risco em torno dos grandes carnívoros aumenta a probabilidade de ataques.
O estudo indica que dois dos comportamentos de risco mais comuns envolvem os pais que deixam seus filhos brincarem sozinhos e pessoas que saem para passear com cães sem coleira. Wilkinson destaca que 66% dos ataques de coiotes envolvem cães.
“[As pessoas] acabam em situações em que seu cão é perseguido ou persegue um coiote, ou elas podem passear com seus cães perto de uma toca demarcada e o coiote quer afastá-los dali”, explica Wilkinson.
As pesquisas de Penteriani indicam que os ataques de grandes carnívoros aumentaram progressivamente entre 1950 e 2019, embora os números possam sofrer alguma influência do aumento simultâneo de relatos de conflitos entre seres humanos e animais selvagens em geral. E existem algumas razões importantes para este aumento.
Nas últimas décadas, o trabalho de conservação dos carnívoros e recuperação da sua população se tornou mais eficaz. Segundo Servheen, “a população de ursos-pardos [hoje] é cinco vezes maior do que 40 anos atrás nos 48 Estados contíguos [dos Estados Unidos]”.
Servheen destaca que as pessoas que se mudam das cidades para o campo, muitas vezes, não sabem ou não tiveram tempo de aprender como respeitar os animais selvagens que vivem por ali. O resultado é seu comportamento descuidado, que as leva a manter cestos de lixo que não são à prova de animais e podem transformar animais carnívoros em ameaças condicionadas pelos alimentos.
Especialistas acreditam que as mudanças climáticas também colaboram para a escalada dos conflitos entre seres humanos e animais carnívoros, mas esta correlação ainda precisa ser mais estudada.
“À medida que os recursos finitos se tornam mais escassos, os animais carnívoros e as pessoas passam a manter contato com mais frequência, o que pode gerar mais conflitos”, afirma a especialista de programas internacionais do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, Jen Miller.
Ela explica, por exemplo, que houve um aumento dos ataques de leões no oeste da Índia durante uma seca, que fez com que as pessoas e os animais passassem a procurar as mesmas fontes de água.
As mudanças climáticas também estão tornando o inverno mais curto e reduzindo a cobertura de neve no hemisfério norte. Servheen destaca que este fenômeno pode estar fazendo com que os ursos terminem de hibernar antes que suas fontes comuns de alimento estejam fartamente disponíveis, como insetos e plantas.
“Quando eles descem as montanhas [em busca de alimento], eles chegam aos [vales] onde existem muitas pessoas”, diz.
À medida que os territórios ao norte se aquecem e o gelo derrete em regiões como o Ártico, os ursos polares também se movimentam para áreas ocupadas pelo ser humano, em busca de alimento.
Em agosto, um funcionário de uma remota estação de radar do Ártico no território Nunavut, no Canadá, foi morto por dois ursos-polares – embora ainda não se saiba ao certo quem provocou o ataque.
As pesquisas de Penteriani indicam que a probabilidade de conflitos entre seres humanos e animais carnívoros parece ser maior em regiões dominadas por fazendas e vastas áreas rurais em países de baixa renda.
“Existem muitos cenários no Sul Global que são realmente heterogêneos, intercalados com habitats de carnívoros, florestas e savanas”, explica Wilkinson. “Isso cria muito mais oportunidades para estes encontros, estatisticamente falando.”
Nestas regiões, a população de animais carnívoros é maior e mais espalhada. Como as pessoas que moram ali dependem da agropecuária para seu sustento, elas têm mais possibilidade de entrar em contato com os carnívoros, segundo Wilkinson.
Esta sobreposição de habitats gera um círculo vicioso de conflitos entre humanos e animais, que resulta em muito mais mortes de animais do que de seres humanos.
“Em alguns lugares, a violência – tanto retaliatória quanto a matança preventiva de animais selvagens – pode se tornar a única opção para os criadores [de animais] poderem ganhar a vida ou ter o suficiente para alimentar suas famílias”, afirma Feldman.
Os especialistas afirmam majoritariamente que eliminar os animais não é a solução. Esta reação, quando se torna o padrão, pode causar forte declínio da população e ameaçar os animais de extinção.
Foi o que aconteceu com os lobos-cinzentos nos Estados Unidos antes de 1960, segundo Penteriani. “Você precisa fazer algo para evitar e reduzir a possibilidade de ataques”, diz.
Como evitar
Os conflitos entre os seres humanos e os animais selvagens podem parecer inevitáveis, devido ao aumento da população e dos habitats dos carnívoros. Mas existem formas de minimizar o risco de se envolver com esses animais.
Em primeiro lugar, é preciso compreender melhor os carnívoros da sua região, o que pode atraí-los e quais situações podem deixar você vulnerável.
“Grande parte do poder nessas situações está nas suas mãos”, afirma Wilkinson, “seja por conhecer o comportamento dos animais ou por ter as ferramentas certas para usar nessas raras situações.”
Wilkinson sugere trazer sacos para sempre guardar os alimentos ao acampar, carregar spray contra ursos para o caso de encontrar algum deles e manter os cães na coleira, para que eles não atraiam os animais carnívoros.
Existem orientações gerais para evitar os ataques. Penteriani destaca que, em territórios de carnívoros, é importante se manter em grupos de pelo menos três adultos. E, se você estiver passeando com seu cão, sempre o mantenha na coleira, mesmo em áreas mais urbanas à beira da mata.
Evite ficar a céu aberto durante o nascer e o pôr do sol, que são os horários em que os carnívoros costumam ficar mais ativos.
E, se você observar um animal carnívoro, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos orienta a manter pelo menos 90 metros de distância – ou o comprimento de um campo de futebol.
Um dos maiores desafios é evitar que esses animais se habituem e fiquem condicionados pelos alimentos, principalmente porque cada vez mais pessoas estão se mudando para o campo.
Para enfrentar esta questão, Servheen ajudou a criar o programa comunitário Bear Smart, um modelo de como viver em habitats de ursos, já implementado em comunidades do Estado norte-americano de Montana.
O programa inclui a proteção dos alimentos que atraem os animais, com cestos de lixo à prova de ursos, e a instalação de cercas elétricas em torno de jardins e animais de criação, além de nunca deixar alimentos do lado de fora e levar proteção para acampar, como spray contra ursos.
Penteriani afirma que medidas preventivas como estas devem evitar a maior parte dos ataques de animais carnívoros. Mas, mesmo se um ataque for iminente, você ainda pode tomar medidas para evitar lesões.
Se você encontrar um puma ou outro grande felídeo, não corra. Wilkinson explica que eles irão pensar que você é uma presa e poderão facilmente alcançá-lo.
Em vez disso, faça lentamente com que você se pareça a maior e mais ameaçadora criatura que puder. Bater palmas, chutar o solo e até atacar o animal provavelmente irão assustá-lo.
Siga as mesmas medidas em relação aos ursos. O Serviço de Parques Nacionais dos Estados Unidos também sugere falar calmamente para mostrar que você é um ser humano – e, portanto, uma ameaça maior para eles.
Você nunca deverá voltar suas costas para os animais nem subir em árvores, pois os ursos-pretos e pardos podem subir melhor do que você.
Quando não for possível evitar o ataque, manobras defensivas podem ajudar você a evitar lesões sérias ou mortais, mas elas variam para cada espécie de animal.
Com o urso-pardo, Wilkinson recomenda se fingir de morto, deitar-se de bruços ou cobrir as partes mais vulneráveis do corpo com uma mochila. Outra boa ideia é cobrir sua cabeça com os braços.
Já os ursos-pretos devem ser combatidos com todas as forças, pois você tem mais probabilidade de vencer o animal menor.
Também é possível revidar contra pumas e felídeos similares, como fizeram Bergere e suas amigas. Use o que você tiver à mão para afastar o animal e então o ameace ou subjugue com o que houver por perto (pedras, galhos, bicicleta), até que ele saia correndo ou que chegue ajuda.
Por fim, evitar conflitos com animais consiste em respeitá-los, definindo fronteiras para que eles possam fazer isso também. A coexistência pacífica é possível, mas, como espécie dominante, os seres humanos precisam tomar mais iniciativa para que ela funcione, segundo Miller.
“Se as pessoas que vivem com carnívoros puderem contar com apoio e receber o que elas precisam para conviver, a coexistência entre seres humanos e animais carnívoros é possível”, destaca ele.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.
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