Apesar de a tragédia envolvendo o avião da Voepass em São Paulo, que deixou 62 mortos na sexta-feira (9/8), ocorrer no “no momento mais seguro da aviação no mundo“, a notícia por si só deixa futuros passageiros apreensivos e buscando por respostas .
As investigações sobre o pior acidente aéreo no Brasil desde 2007 ainda estão em fase inicial e, segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), “tudo ainda é prematuro”.
Logo após a queda do avião em Vinhedo (SP) e diante de especulações nas redes sociais, especialistas em segurança de voo apontaram que a formação de gelo sobre as asas pode ser uma das hipóteses a ser investigada como causa do acidente.
Segundo analistas, essa é uma ocorrência rara, especialmente porque a maioria das aeronaves possui sistemas eficazes para evitar que o acúmulo de água congelada afete a capacidade de sustentação.
A aeronáutica informou que as caixas-pretas da aeronave – que guardam os registros do voo – já estão em Brasília para averiguação.
Mas, num cenário mais amplo da aviação global, o que ainda tem causado os acidentes com vítimas fatais no mundo?
A Boeing, uma das maiores fabricantes de aeronaves, publica regularmente um relatório global a respeito dos acidentes envolvendo aviões a jato comerciais – o que não é o caso especifico do avião da Voepass, um ATR turboélice.
Os jatos, em geral, são os aviões que transportam mais passageiros e fazem as viagens de distâncias mais longas.
Entre 2013 e 2022, segundo a Boeing, o maior número de mortes aconteceu em acidentes causados por “perda de controle em voo” (757) , “falha ou mau funcionamento do sistema, não relacionado ao motor” (158), “saídas da pista na decolagem ou pouso” (134) e por problemas “relacionados ao combustível” (71).
“No caso da perda de controle, por exemplo, pode acontecer por uma infinidade de razões, seja humana ou não. A gente tem que entender que é multifatorial e há múltiplas possibilidades”, diz Maurício Pontes, investigador de acidentes aeronáuticos e assessor executivo da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (Abrapac).
Pontes usa como exemplo um recente incidente com um voo da Latam entre Sydney (Austrália) e Santiago (Chile), que deixou 13 feridos após a aeronave ter uma perda brusca de altitude.
Investigações mostraram que o esbarrão de uma aeromoça num botão mal posicionado no assento do piloto pode ter acionado os controles que lançaram o nariz do avião para baixo. Ou seja, uma falha “humana”, mas também dos equipamentos da aeronave.
A Flight Safety Foundation, organização sem fins lucrativos com foco em discussões sobre segurança de acidentes aéreos, também mantém um banco de dados a respeito de quedas e incidentes com aeronaves no mundo.
Entre os acidentes envolvendo vítimas fatais em aeronaves comerciais e jatos corporativos, as causas mais comuns entre 2017 e 2023 foram “perda de controle em voo”, o “voo controlado contra o terreno” (quando uma aeronave em condições de voo e sob controle total do piloto é conduzida para a terra ou água), “causas desconhecidas” e “saída da pista, na decolagem ou pouso”.
Justamente por serem investigações complexas e “multifatoriais”, é difícil se chegar uma conclusão, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil.
Mas o banco de dados online Plane Crash Info, que, apesar de não ser oficial, reúne algumas estatísticas sobre acidentes aéreos no mundo, aponta a falha humana como responsável por 49% dos seus registros entre 1950 e 2019. Em seguida, vem a falha mecânica (23%) e fatores climáticos (10%).
Fator humano
Em artigo no site The Conversation, Simon Ashley Bennett, diretor da Unidade de Segurança e Proteção Civil da Universidade de Leicester, no Reino Unido, aponta que “à medida que as aeronaves se tornaram mais confiáveis, e modernas, a proporção de acidentes causados por erro do piloto aumentou”.
Atenção para a palavra “proporção”, já que o número de acidentes de uma forma geral tem diminuído.
“As aeronaves são máquinas complexas que requerem muita gestão. Como os pilotos interagem ativamente com a aeronave em cada fase de um voo, há inúmeras oportunidades para algo dar errado”, escreveu Bennett no artigo.
Para Celso Faria de Souza, perito criminal especializado em acidentes aeronáuticos e diretor da Associação Brasileira de Segurança de Voo (Abravoo), este é um assunto muito delicado, já que os dados não são muito bem recebidos entre os profissionais da aviação.
Um estudo norueguês, por exemplo, estimou que entre 70 e 80% dos acidentes são causados por erro humano (não só dos pilotos) – desses, 4,7% estariam relacionados a problemas de saúde dos profissionais.
“A fadiga dos profissionais, por exemplo, só começou a ser estudada há pouco tempo. Até 3 anos atrás, ninguém dava atenção para a saúde mental”, diz Faria de Souza.
No entanto, em entrevista à BBC News Brasil, Bennett afirmou que muitos dos erros humanos são induzidos por outros fatores.
“É importante notar que o erro humano pode ser induzido por fatores além do controle do piloto, como um instrumento colocado em um local mal projetado, uma escala de trabalho cansativa demais ou um procedimento de companhia aérea mal planejado”, afirmou Bennett.
Segundo ele, muitos pilotos levam a culpa porque “é fácil e conveniente para a companhia aérea, autoridades e fabricantes culparem os pilotos”.
“É ainda mais fácil se eles estiverem mortos. Culpar os pilotos — muitas vezes vítimas da falta de cuidado de outras coisas — livra o fabricante, a companhia aérea e as autoridades da responsabilização. É um mundo desagradável e egoísta.”
Falhas humanas também podem estar relacionadas a profissionais como controladores de tráfego aéreo, reabastecedores ou engenheiros de manutenção.
“O ser humano está em todas as etapas da operação, e o ser humano é exatamente o elemento mais complexo da operação”, avalia Maurício Pontes, da Abrapac.
“O fator humano ele envolve fadiga, as condições de saúde mental em que pessoas se encontram naquele momento. O ser humano é muito eficaz, eficiente e insubstituível, mas, como as máquinas , também falhamos”, completa.
Em seu artigo, Bennett ressalta ainda que o piloto também é “a última linha de defesa quando as coisas dão errado”.
Ou seja, são os humanos que muitas vezes conseguem reverter problemas na máquina. Um dos casos mais emblemáticos é a do capitão Chesley Sullenberger, que conduzia o voo 1549 da US Airways, e conseguiu aterrissar no rio Hudson, em Nova York, em 2009, após ambos motores serem atingidos por pássaros.
Todos sobreviveram, e a história virou até o filme Sully – O Herói do Rio Hudson, com Tom Hanks.
Bennett disse à BBC News Brasil que justamente pelo fato dos pilotos serem a última linha de defesa, é perigoso depender demais da tecnologia.
“A tecnologia pode reduzir a carga de trabalho, mas cria novos problemas para os pilotos. Por exemplo, quanto mais automatizado um convés de voo se torna, mais difícil é para os pilotos identificarem rapidamente uma falha quando algo dá errado”, explica.
O especialista afirma que os pilotos ainda precisam monitorar os sistemas, porque, “apesar das alegações dos fabricantes e das companhias aéreas, a tecnologia não é 100% confiável”.
“A aviação é tecnófila — como o resto da sociedade. A suposição inicial em uma sociedade tecnófila como a nossa é que toda tecnologia é benéfica. Mas nem sempre é. Ela às vezes funciona mal. Ela tem bugs (erros).”
As falhas nos equipamentos da aeronave também podem representar parte importante dos acidentes.
“Embora os motores sejam significativamente mais confiáveis hoje do que há meio século, eles ainda ocasionalmente sofrem falhas “, escreveu Simon Ashley Bennett.
Para Celso Farias de Souza, da Abravoo, os problemas mecânicos hoje são “quase zero”. “O que você tem são problemas eletrônicos, de software”, avalia.
Maurício Pontes, da Abrapac, ressalta que a tendência é que esse tipo de problema vá diminuindo cada vez mais.
“Não existe atividade mais regulada que as indústrias aeroespacial e nuclear. A tendencia é ter cada vez mais segurança em relação ao fator material, até pelas tecnologias que estão sendo desenvolvidas. Mas acontece”, diz.
As medidas de mitigação desse problema também são mais “simples”, segundo Pontes.
“O fator humano tem muita psicologia envolvida, que é algo complexo. Já o fator material pode muitas vezes estar relacionado à engenharia de projetos ou ao envelhecimento de equipamentos, e aprendemos com isso. O que nos conforta minimamente é que as tragédias não são em vão. Sempre vamos ter um relatório no fim com recomendações”, completa.
Às vezes, novas tecnologias também introduzem novos tipos de falha.
O professor Simon Ashley Bennett dá como exemplo o avião comercial Comet, construído na década de 1950 pela indústria aeronáutica inglesa Havilland. A aeronave era a primeira propulsionada por motores a jato.
Após dois acidentes fatais em 1954, todos os modelos da empresa foram proibidos de voar.
Recentemente, a Boeing vem enfrentando problemas a respeito do modelo 737 Max, após acidentes fatais e o caso de um avião da Alaska Airlines, que perdeu parte da fuselagem em pleno voo.
Fator clima
O mau tempo representava em 2015 cerca de 10% das perdas de aeronaves, segundo o artigo de Simon Ashley Bennett . Apesar de uma abundância de auxílios eletrônicos, como navegação por satélite e dados meteorológicos, as aeronaves ainda enfrentam problemas em tempestades, neve e neblina.
Celso Faria de Souza, da Abravoo, reforça que a questão climática entra como um desafio para a indústria na “combinação de fatores” que pode contribuir com acidentes.
Ele cita o exemplo do voo AF447, da Air France, que caiu na viagem entre Rio e Paris, em que os sensores de velocidade (as sondas Pitot) congelaram.
“O avião teria atravessado a condição severa de tempo, porém perdeu o Pitot e desorientou. Foi um problema no equipamento, mas o fator climático contribuiu para o acidente”, diz Souza.
Para Maurício Pontes, é preciso ainda tocar “num outro assunto preocupante, que é a mudança climática”.
“Temos muita segurança, os pilotos hoje contam com equipamentos cada vez mais sofisticados de antecipação de situações climáticas adversas, que permite desvios, que se alterne a outro aeropoto. Mas essa é uma preocupação, porque se torna mais imprevisível.”
Recentemente, cientistas da Universidade de Reading, no Reino Unido, estudaram a chamada turbulência de ar claro (quando a temperatura potencial aumenta com a altura), que é mais difícil para os pilotos evitarem.
Eles descobriram que a turbulência severa aumentou 55% entre 1979 e 2020 em uma rota tipicamente movimentada do Atlântico Norte.
Os pesquisadores atribuem o aumento às mudanças na velocidade do vento em grandes altitudes ao ar mais quente resultante das emissões de carbono.
“Após uma década de pesquisa mostrando que a mudança climática aumentará a turbulência de ar claro no futuro, agora temos evidências sugerindo que o aumento já começou”, disse o professor Paul Williams, cientista atmosférico da Universidade de Reading, coautor do estudo.
“Devemos investir em sistemas aprimorados de previsão e detecção de turbulência para evitar que o ar mais agitado se traduza em voos mais irregulares nas próximas décadas.”
Vale salientar, porém, que as turbulências, apesar ter deixado feridos em episódios recentes, não estão relacionadas necessariamente a acidentes fatais,