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Quem está por trás do que pode ter sido dia mais sangrento na guerra no Sudão?

 

Aviso: esta reportagem contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores

Para Ali Ibrahim, um agricultor de 40 anos, o pesadelo começou no dia 5 de junho, no final da tarde, com o som de armas pesadas.

“Nunca tínhamos visto um bombardeio como esse desde a nossa infância”, lembra ele. “O bombardeio durou quatro horas, as casas foram destruídas, as crianças choravam, as mulheres e os idosos não conseguiram fugir.”

Pelo menos 100 civis foram mortos naquele dia no ataque ao vilarejo de Wad al-Nourah, de acordo com estimativas de voluntários do comitê de resistência local.

Ali afirma que os moradores do vilarejo não estavam armados: “Somos apenas agricultores. Nunca carregamos armas. Não temos inimigos. Somos apenas cidadãos tentando proteger nossas vidas.”

Um grande grupo de pessoas enlutadas reunido em um campo aberto ao lado de vários corpos envoltos em tecidos

Crédito,Reprodução / X

Legenda da foto,Imagens postadas em redes sociais mostraram corpos preparados para funeral coletivo

A BBC obteve depoimentos de vários sobreviventes que acusam os combatentes do RSF — o grupo paramilitar que enfrenta o exército sudanês — de terem disparado e atacado o vilarejo em dois ataques sucessivos, utilizando armas pesadas, matando e ferindo dezenas de habitantes.

O número estimado de mortos neste incidente representaria o maior número de vítimas civis em poucas horas desde o início da guerra entre o exército e o RSF em abril de 2023.

 Pessoas recebendo tratamento em um hospital no Sudão.
Legenda da foto,Sobreviventes do ataque a Wad al-Nourah sendo tratados no hospital Al Managil

A BBC conseguiu entrevistar vários sobreviventes do ataque a Wad al-Nourah, que estão atualmente sendo tratados no hospital governamental de Al Managil, para onde foram transferidos.

Os jornalistas também puderam analisar os vídeos que eles compartilharam.

O hospital está localizado a cerca de 80 km do vilarejo, e muitos sobreviventes chegaram lá poucas horas após o ataque.

De acordo com seus depoimentos, as forças de segurança também tentaram impedir que eles deixassem o vilarejo e saquearam a maioria de seus veículos.

Sobreviventes do ataque a Wad al-Nourah aguardam atendimento do lado de fora do hospital.
Legenda da foto,Grupos de pacientes sentados do lado de fora do hospital, em camas e no chão

Ataque matinal

Após suportar “horas de terror” durante o bombardeio e, em seguida, fazer tentativas frenéticas para encontrar uma forma de transportar os feridos e enterrar os mortos, os moradores ficaram “chocados” com um segundo ataque das forças de segurança ao seu vilarejo na manhã seguinte, conta Nisreen, uma dona de casa e uma das sobreviventes no hospital, à BBC.

“Entraram em nossa casa, nos agrediram, a mim e aos meus irmãos, e perguntaram: ‘Onde está o ouro?’ Minha irmã mais nova ficou com medo e disse à minha mãe para entregar o ouro, que valia bastante.”

O relato de Nisreen é consistente com o de outros sobreviventes, que confirmaram que as forças do RSF “atacaram o vilarejo de três direções, invadiram as casas, mataram civis e saquearam objetos de valor, incluindo ouro, carros e produtos agrícolas armazenados”.

‘Mataram meu irmão’

Hamad Suleiman, um comerciante de 42 anos, relatou que combatentes armados, forças de segurança republicanas, entraram na casa de seu irmão e começaram a atirar sem aviso.

“Fui até a casa do meu irmão e os encontrei lá… Eles mataram meu irmão e meu sobrinho, e outro sobrinho ficou ferido e está comigo no hospital.

Ele conta que tentou conversar com os combatentes do RSF e perguntou por que haviam matado sua família.

“Tentei falar com eles e eles me mandaram recitar a shahada [profissão de fé islâmica recitada quando se sente próximo da morte]. Eles atiraram na minha mão e fugiram… saquearam todos os carros.”

“Eu estava ferido e não consegui encontrar uma saída por horas.”

Pessoas fugindo da cidade de Wad al-Nourah em um caminhão
Legenda da foto,Pessoas fugindo da cidade de Wad al-Nourah

‘Al Mustanfaron’

A BBC entrou em contato com o RSF para obter uma resposta sobre os depoimentos dos sobreviventes e as acusações de ataques, assassinatos, saques e intimidações. No entanto, não recebemos nenhuma resposta até o momento da publicação deste relatório.

O porta-voz do RSF, Al-Fateh Qurashi, publicou uma declaração em vídeo no X (antigo Twitter) um dia após o incidente, negando que suas forças tivessem como alvo civis.

Ele afirmou que as forças estavam envolvidas em confrontos com elementos das Forças Armadas Sudanesas (SAF) e dos serviços de inteligência — também conhecidos como Al Mustanfaron — uma milícia armada com armas leves e alinhada com as SAF, que estava no vilarejo no momento do ataque.

mapa de locais que o RSF afirma ter controlar

Fora do vilarejo

A equipe de investigação da BBC analisou vídeos fornecidos pelo RSF, que, segundo a organização, mostravam locais e trincheiras usados por Al Mustanfaron em Wad al-Nourah. A análise revelou que esses locais estavam todos situados fora do vilarejo, e não dentro.

A análise também mostrou que membros das forças de segurança dispararam em direção ao vilarejo com armas pesadas a uma distância de aproximadamente um quilômetro.

Wad al-Nourah é semelhante a centenas de vilarejos espalhados pelo estado de Gezira. A maioria de seus habitantes trabalha na agricultura e no comércio, e há um pequeno mercado semanal onde comerciantes dos vilarejos vizinhos compram e vendem gado e colheitas.

O RSF assumiu o controle do estado de Gezira, ao sul da capital, Cartum, em dezembro de 2023, e tem sido acusado de cometer diversas atrocidades contra civis na região, o que a organização sempre negou.

O estado de Gezira é uma das áreas mais afetadas pela guerra, com os combates se espalhando desde o início do conflito. Também se tornou um refúgio para milhares de pessoas deslocadas que fogem de Cartum e do Darfur.

Desde que as forças de segurança assumiram o controle da região no final do ano passado, os vilarejos têm sido vítimas de atos de violência consecutivos. O RSF continua a negar as acusações de crimes de guerra, como assassinatos, saques, estupros e incêndios de vilarejos, e culpa, em vez disso, o que eles chamam de pessoas “indisciplinadas”.

mapa

Pedido de investigação

Um grupo de mulheres, de pé e sentadas à beira da estrada.
Legenda da foto,Pessoas deslocadas pelo conflito em Wad al-Nourah aguardam para serem transportadas

De acordo com relatórios das Nações Unidas, a guerra no Sudão já causou a morte de 14 mil pessoas e forçou cerca de dois milhões a abandonar suas casas desde abril do ano passado, quando o país mergulhou no caos após o início de um conflito intenso entre o exército e um poderoso grupo paramilitar pela disputa de poder.

A coordenadora residente e humanitária da ONU para o Sudão, Clémentine Nkweta-Salami, pediu que uma investigação completa e transparente seja realizada para esclarecer as circunstâncias do ataque a Wad al-Nourah.

Os moradores do vilarejo, que perderam dezenas de entes queridos, esperam que uma comissão de inquérito seja estabelecida e que os responsáveis pelo atentado sejam responsabilizados por seus atos, em vez de escaparem de qualquer punição, como ocorreu no passado no Sudão.

Reportagem complementar de Abdelrahman Abutaleb e Richard Irvine-Brown.

bbcnews

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