O relógio marcava 21h40 quando João do Rio (1881-1921) tomou o caminho de casa. Estava tão cansado que recusou convite para assistir a Tristão e Isolda no Municipal. No Largo da Carioca, sede do jornal A Pátria, pegou o primeiro táxi rumo à Avenida Meridional, atual Vieira Souto, em Ipanema, onde morava com a mãe, Florência.
Na esquina das ruas Pedro Américo e Bento Lisboa, no Catete, começou a passar mal. “Um copo d’água, pelo amor de Deus!”, suplicou, levando a mão até o peito. Tarde demais.
Quando o motorista voltou do botequim mais próximo, já encontrou o passageiro morto no banco de trás.
“A notícia espalhou-se pela noite carioca como uma epidemia”, escreveu o jornalista João Carlos Rodrigues na biografia João do Rio – Vida, Paixão e Obra (Civilização Brasileira, 2024).
O corpo de João do Rio foi levado para a sede do jornal que ele fundou em 1920. O cadáver foi embalsamado e vestido com o fardão da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Apesar de ter sido eleito para a cadeira 26 em 1910, não frequentava a instituição desde 1919, quando Humberto de Campos (1886-1934), um antigo desafeto, tornou-se acadêmico.
Por essa razão, sua mãe doou a biblioteca do filho para o Real Gabinete Português de Leitura.
Assim como seu corpo não foi velado na ABL, também não foi sepultado no mausoléu da instituição.
Desavenças à parte, a popularidade de João do Rio era tanta que, segundo estimativas da época, 100 mil pessoas compareceram ao seu enterro no São João Batista, em Botafogo.
“Nessa época, o Rio tinha 400 mil habitantes”, estima Rodrigues. “Um quarto da população compareceu ao cemitério para prestar sua última homenagem”. A título de comparação, o funeral de Getúlio Vargas (1882-1954) atraiu 300 mil pessoas.
De luto pela morte de João do Rio, os teatros suspenderam as sessões e o comércio não abriu suas portas.
“Os taxistas ofereceram corridas gratuitas para quem morava no subúrbio chegar até o velório”, observa a jornalista e editora Graziella Beting, organizadora do livro de crônicas Gente às Janelas (Carambaia, 2024).
O funeral atraiu tanto anônimos, como ambulantes, estivadores e prostitutas, quanto famosos, como políticos, escritores e socialites.
Só ex-presidentes da República, foram dois: Hermes da Fonseca (1855-1923) e Nilo Peçanha (1867-1924). Quem não pôde ir passou telegrama de pêsames ou mandou coroa de flores.
Ostracismo literário
Apesar de sua enorme popularidade, a obra de João do Rio logo caiu em esquecimento. Solteiro, não deixou filhos. Mas, deixou um acervo de 2,5 mil textos, entre crônicas, contos e romances.
Em 1912, teve uma de suas peças, A Bela Madame Vargas, encenada no Municipal. A obra escandalizou o público ao mostrar uma inédita cena de beijo.
“Era considerado imoral. Um verdadeiro tabu”, define Orna Messer Levin, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e organizadora da antologia de contos João do Rio (Editora Nacional, 2010). “Mais um traço do pioneirismo de João do Rio”.
A memória do jornalista e escritor começou a ser resgatada em 1978 quando Raimundo Magalhães Júnior (1907-1981), outro imortal da academia, escreveu sua primeira biografia, A Vida Vertiginosa de João do Rio.
Hoje, o autor de A Alma Encantadora das Ruas (1908), sua obra mais famosa, é homenageado na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a mais importante do Brasil.
“Imagino que ele tenha ficado tanto tempo sem ser lido pelo próprio gênero em que escrevia – a crônica costuma ser tratada como um gênero menor – e porque não deixou herdeiros para levar adiante seu legado”, arrisca Ana Lima Cecilio, curadora do evento.
Há outras hipóteses para o fato de João do Rio ser menos lido do que alguns de seus contemporâneos, como Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
“Durante muito tempo, não esteve nos livros didáticos e nas aulas de literatura, as duas principais portas de entrada da leitura no Brasil”, afirma Fabiano Ormaneze, doutor em Linguística pela Unicamp e autor do volume dedicado a João do Rio da coleção infantojuvenil Black Power da Editora Mostarda.
“A segunda razão é que, sendo mais conhecido como jornalista, a obra de João do Rio nem sempre esteve no cânone literário. Romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881 – Machado de Assis) e Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915 – Lima Barreto) têm larga trajetória de aclamação pela crítica”.