As eleições presidenciais dos Estados Unidos, que ocorrem nesta terça-feira (5), são acompanhadas no mundo inteiro pelos possíveis efeitos de um novo comando no país conhecido por ser uma potência política, econômica e militar. Mas a escolha dos norte-americanos por Donald Trump ou Kamala Harris pode ter impactos na nossa própria aldeia, com consequências na economia catarinense e nas tendências políticas e sociais para o Brasil.
Um dos reflexos mais diretos que a eleição nos Estados Unidos pode ter sobre Santa Catarina ocorre na economia. Isso porque o mercado norte-americano é visto como estratégico para uma parte da produção industrial de SC. Somente em 2023, o mercado catarinense exportou US$ 1,6 bilhão em produtos para compradores dos EUA. O ranking é liderado pelos setores de fabricação de madeira e produtos com esta matéria-prima (R$ 561,8 milhões), automóveis e produtos automotivos como reboques (R$ 260,9 milhões) e equipamentos elétricos (R$ 212 milhões).
O professor de Relações Internacionais da Univali e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Daniel Corrêa da Silva, explica que a eleição afeta diretamente esses setores porque envolve um possível fechamento maior do mercado norte-americano a produtos estrangeiros. O assunto vem em alta desde a primeira eleição de Trump, em 2016. O argumento é de que mais restrições à entrada de produtos de outros países, como a rival China, poderiam proteger empresas nacionais e preservar preços e empregos dos americanos. As medidas acompanham o momento mundial de enfraquecimento do multilateralismo e tendência de disputa entre blocos de países.
Segundo o professor de Relações Internacionais, os cenários com Trump ou Kamala podem não ter perspectivas tão diferentes para SC. Isso porque embora o candidato republicano tenha um discurso mais enfático de protecionismo à economia dos Estados Unidos, quando foi presidente ele não atuou tanto quanto poderia nesta direção. Já a gestão democrata de Joe Biden, vencedor da eleição de 2020, também não reverteu essa tendência de fechamento do mercado e de mais restrições a importações, como o discurso poderia sugerir.
— Trump parece verbalizar mais, mas na prática os dois devem continuar essa tendência, o que no caso de SC pode gerar algum tipo de impacto — detalha.
As medidas de restrição com Kamala e Trump
As medidas restritivas poderiam vir de diferentes formas. Em caso de vitória de Kamala Harris, ela deve apostar em subsídios para indústrias importantes, como os setores de energia renovável e alimentos. Nesse caso, empresas de SC e do Brasil que pensam em entrar no mercado norte-americano teriam mais dificuldades de competir, já que as empresas locais teriam incentivos financeiros e preços melhores. No caso de SC, o segmento de carnes de aves e suínos, que tem bons números de exportações para a Ásia, por exemplo, pode ficar em desvantagem na disputa pelo mercado americano.
No caso de vitória de Trump, que vê de forma mais agressiva a formação de blocos entre países, o protecionismo poderia ocorrer na forma de corte de impostos locais e aumento de tarifas de importação, com até 10% de taxa sobre todos os importados.
— O que isso acarreta? Cadeias onde o Brasil compete diretamente com os Estados Unidos também vão ter dificuldades adicionais — explica o economista-chefe da Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), Pablo Bittencourt.
Ainda no campo da economia, outro impacto direto sobre SC e o Brasil é que as duas candidaturas deixam preocupação com aumento da inflação nos Estados Unidos. Com o acirramento da eleição, as promessas dos candidatos têm aumentado, o que pode levar a uma alta dos gastos públicos e dificuldades fiscais.
Para os norte-americanos, o resultado seria aumento dos preços e uma taxa de juros mais alta. Para os brasileiros, deixaria os juros no país também elevados, para tentar competir com o retorno dado aos investidores nos Estados Unidos. Isso poderia levar um fluxo maior de investidores aos EUA do que ao Brasil. A influência do cenário americano no dólar, variante importante nos preços dos produtos no Brasil, já que muitos insumos por aqui são importados, também pode causar impactos no país.
Acordo sobre tecnologia e abertura de mercado
Por fim, também na economia, mais um aspecto que pode ter impacto para os catarinenses está na negociação de um acordo de facilitações entre Brasil e Estados Unidos para investimentos em áreas de tecnologia da informação (TI) e comunicações. A parceria foi discutida durante as gestões de Trump e Bolsonaro, mas esfriaram após a vitória de Biden. A dúvida é se uma vitória de Kamala poderia retomar essas conversas.
— A facilitação de investimentos poderia ser muito positiva para desenvolver serviços mais avançados, com taxa de remuneração mais elevada, e favoreceria nosso Estado, que tem polos consolidados no segmento de tecnologia, como Florianópolis e, mais recentemente, Blumenau e Joinville — detalha Daniel Corrêa da Silva.
O economista-chefe da Fiesc confirma que a eleição nos Estados Unidos é um dos fatores externos ao Brasil mais importantes na definição de ações para alguns setores da indústria local, mas antecipa que nenhum dos dois candidatos que vença deve levar a um aumento das relações comerciais do país com o mundo.
— Uma vitória de Trump deixa mais incertezas com efeito imediato, ligado às tarifas, mas mesmo uma vitória de Kamala não quer dizer que [o país] vai voltar à abertura de mercado — afirma Bittencourt.
Efeitos na política podem fortalecer extrema direita
As eleições norte-americanas podem causar mudanças também no cenário político. A doutora em Ciência Política e professora de Relações Internacionais da UFSC, Clarissa Dri, avalia que em termos práticos o resultado eleitoral deve representar poucas mudanças para o país, mas considera que “em termos discursivos e retóricos”, a eleição de Trump seria uma ameaça à estabilidade política em toda a América Latina, incluindo o Brasil.
A especialista aponta que há um momento de crise no multilateralismo e um esvaziamento de fóruns como a ONU, com papel de mediação e acordos entre países. Em vez da diplomacia, são os militares que atuam em conflitos como os de Rússia e Ucrânia e Israel. Nem mesmo o governo Biden conseguiu reverter essa tendência, o que leva a crer que nem uma gestão Trump e nem uma gestão Kamala conseguiria frear esse processo.
Apesar disso, o discurso mais inflamado de Trump em favor do isolamento e do protecionismo poderia acentuar esse cenário.
— O governo Trump narrativamente defende a militarização, fala que a guerra pode ser uma saída importante, fala contra a paz. Isso não leva a uma minimização dos riscos militares, mas a um aumento desses riscos — aponta.
No Brasil, o exemplo mais próximo disso seria a situação da Venezuela, onde há risco de conflitos civis e até mesmo guerras com interferência dos EUA e impactos no país.
Reflexos em eleições
As eleições americanas também devem influenciar na política de países latino-americanos nos anos seguintes. O professor de Relações Internacionais da Univali e da UFSC, Daniel Corrêa da Silva, afirma que uma vitória de Trump beneficia figuras mais conservadoras e de extrema direita até mesmo no Brasil, para disputas nos Estados e à Presidência. Figuras como Javier Milei, na Argentina, e Jair Bolsonaro, no Brasil, sairiam fortalecidos.
— Mas o contrário não necessariamente é verdadeiro. Uma vitória da Kamala não seria uma vida mais fácil para progressistas — avalia.
Uma vitória de Trump, em caso de manutenção do discurso negacionista sobre as mudanças climáticas, poderia esvaziar a tentativa do Brasil de retomar o protagonismo internacional a partir da pauta ambiental — o país sediará a COP 30 no ano que vem, uma agenda que pode ser enfraquecida caso os Estados Unidos não abracem o tema.
Embora a prática de Trump no poder não necessariamente tenha acompanhado toda a verve conservadora destacada pelo bilionário nos discursos, a doutora em Ciência Política e professora da UFSC afirma que o discurso acaba “tendo vida própria” depois da eleição, endossando posturas mais violentas. Para ela, essa retórica pode trazer instabilidade política à América Latina e ajudar a eleger extremistas no continente.
— O problema não é a extrema-direita, são os extremismos. O extremismo na política leva ao conflito, não leva à mediação, ao diálogo e à conciliação. O que é importante para a paz e o diálogo internacional é que a gente tenha governos republicanos e democráticos, sendo de direita ou de esquerda, que consigam sentar, negociar e resolver suas controvérsias diplomaticamente — aponta.
NSC