Alvo de ampla discussão desde a revelação, em janeiro, do drama yanomami, a saúde dos povos isolados na Amazônia, há algum tempo, tem mobilizado diversos setores da sociedade, na difícil missão de ocupar um vazio deixado pelo setor público. Esse é o caso da ONG Expedicionários da Saúde (EDS), que, no último mês, teve seu trabalho reconhecido pelo Prêmio Zayed de Sustentabilidade, em razão do centro cirúrgico móvel de atendimento a comunidades isoladas, iniciativa criada há 18 anos.
Com uma média de três expedições por ano, o projeto realiza 400 cirurgias, cerca de 4 mil consultas e 10 mil exames e procedimentos nesse período, contando com uma equipe de 70 voluntários, que conduzem atendimentos oftalmológicos, tratamento de pterígios (carne crescida dentro do globo ocular), além de exames médicos junto a povos isolados — comunidades com baixo acesso ao serviço público de saúde, em geral, concentrado nos centros urbanos.
No Prêmio Zayed, que é um dos mais importantes reconhecimentos do mundo em inovação e tecnologia, a ONG brasileira concorreu com outros 4.500 projetos sociais, de 152 países, e levou para casa um aporte de 600 mil dólares, que devem ser investidos no centro móvel. Além do projeto Operando na Amazônia, que mantém o centro cirúrgico, os Expedicionários também dão vida ao projeto Mulheres da Floresta, que trabalha na prevenção do câncer de colo do útero em mulheres indígenas.
Realizada no dia 16 de janeiro, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, a edição deste ano foi a que mais recebeu inscritos em 15 anos. “Foi um reconhecimento a esse trabalho de duas décadas, às 50 expedições que já fizemos. O prêmio é [uma valorização do esforço] dos voluntários nesses anos”, diz Marcia Abdala, diretora geral da ONG sediada em Campinas (SP).
Do primeiro contato às expedições, são muitos os desafios
Com as expedições realizadas nos meses de abril, agosto e outubro, cada missão demanda uma difícil estratégia voltada ao envio dos equipamentos, que partem, por terra ou pelo ar, de dois centros de distribuição, localizados em Campinas e em Manaus.
Na primeira etapa do projeto, uma equipe faz uma visita prévia à aldeia para contar sobre o projeto e confirmar o interesse da comunidade na presença da ONG. A etapa seguinte é a triagem, que identifica as demandas prioritárias de saúde. A trinta dias da missão, uma equipe de logística segue para a aldeia e monta a estrutura para o período de atendimento, que dura de sete a dez dias.
Ao longo do trabalho dos voluntários, uma das condições mais recorrentes, lembra Marcia, é a catarata, que está entre as principais causas da perda de visão e que, para muitos indígenas, se revela uma doença sem cura.
“É muito difícil para um indígena que tem catarata fazer uma cirurgia em Manaus ou onde for. Primeiro porque precisa de um médico especialista para fazer o diagnóstico e eles não têm. Segundo, o deslocamento é difícil, muitas vezes de onde eles moram é necessário passar dias no barco para chegar à Casai [startup de hospedagem], que é a casa de passagem dos indígenas. Por fim, é preciso fazer exames, têm que esperar dias. Eles vivem da caça, da pesca, e não podem passar tanto tempo fora. Às vezes, a cirurgia leva até dois anos para ser marcada. Por isso, muitos deles desistem”, explica a médica.
‘Para muitos, a cirurgia é um milagre’
Para muitos indígenas, após tanto tempo, voltar a enxergar o mundo onde vivem é um milagre. “Na última expedição, na Raposa Serra do Sol, nós operamos uma mulher que estava completamente cega e tinha um filhinho de um ano. Ela não conhecia plenamente esse filho, nunca o tinha visto porque, quando engravidou, já estava cega. Nós a operamos nessa expedição e, desde então, ela voltou a enxergar — viu o filho pela primeira vez”, conta Márcia.
Com voluntários entre médicos e enfermeiros, a logística de atendimento a áreas remotas exige de aviões a antropólogos. “Fizemos uma expedição no Acre e trouxemos indígenas isolados da etnia Zuruahã, que têm um contato bem recente com brancos. Junto com antropólogos, fomos à floresta e identificamos muitos deles com catarata, sem enxergar, há anos. Foi o caso de uma xamã, acompanhada de um netinho que cuidava dela há quase duas décadas. Após a cirurgia, ela voltou a enxergar e parecia uma criança. Viu uns urubus na comunidade e queria caçar, andou até às árvores acompanhada do neto e voltou andando na frente. Muita emoção”, diz Marcia.
Com o apoio de uma rede de parceiros que doam equipamentos caros, medicamentos, insumos e materiais hospitalares para viabilizar as missões, além do suporte dos ministérios da Saúde e da Defesa, a diretora vê com bons olhos a manutenção da parceria, que levou, no último mês, à instalação de um hospital de campanha em Surucucu, região de difícil acesso na Terra Indígena Yanomami. “Precisamos fortalecer a nossa organização para que a gente possa continuar fazendo cada vez mais, para que possamos continuar operando os projetos”, finaliza.
Fonte: Uol