Toda essa área costeira, que se estende não apenas pelo Pará, mas também pelo Maranhão à direita e pelo Amapá à esquerda — e chega até a Guiana Francesa e o Suriname — possui uma grande extensão de manguezais.
Voltando a Marapanim, a cidade abriga a Reserva Extrativista Marinha (Resex) Mestre Lucindo, uma área de 26 mil hectares criada pelo governo federal em 2014.
O Instituto Socioambiental (ISA) destaca que a reserva tem como objetivo “garantir a conservação da biodiversidade dos ecossistemas de manguezais, restingas, dunas, várzeas, campos alagados, rios, estuários e ilhas”, além de “assegurar o uso sustentável dos recursos naturais e proteger os meios de vida e a cultura das comunidades tradicionais extrativistas da região”.
Associações locais estimam que até 5 mil pessoas vivam nessa reserva extrativista. O município de Marapanim tem 28 mil habitantes.
A região também abriga um dos pontos de operação da empresa Barra do Pará, que presta serviços de praticagem.
Em resumo, os grandes navios que vêm do alto-mar e precisam ir aos portos de Belém ou de Vila do Conde, no município de Barcarena, aguardam a chegada dos práticos da empresa Barra do Pará.
Esses profissionais conhecem a região e sabem navegar por baías e rios sem encalhar as embarcações nos bancos de areia.
A praticagem é regulamentada pela lei 14.813/2024, que define o serviço como “atividade essencial, de natureza privada, cujo objetivo é garantir o interesse público da segurança da navegação, da salvaguarda da vida humana e da proteção ao meio ambiente”.
Os práticos ficam de prontidão num píer localizado em Vista Alegre do Pará, que pertence ao município de Marapanim.
Quando são convocados, eles saem de lancha pelo rio Cajutuba até alcançarem o mar, onde acessam os navios que estão na área de espera.
O sumiço da ilha
Daniel Oeiras, presidente da Associação dos Usuários da Reserva Extrativista Marinha Mestre Lucindo (Auremluc), diz que os ribeirinhos da bacia do rio Cajutuba começaram a apresentar queixas em meados de 2019.
“As pessoas da comunidade Itauaçú não encontravam mais pescado, caranguejo, mexilhão…”, relata ele.
Segundo os relatos colhidos por Oeiras, o grande problema é a alta velocidade das lanchas que levam e trazem os especialistas em praticagem até o píer localizado em Vista Alegre.
“As lanchas não querem nem saber o que está no caminho delas. Tivemos casos de canoas quebradas, redes de pesca cortadas… Por sorte não houve mortes. É muito cruel o que a população local está enfrentando”, lamenta ele.
O presidente da associação afirma que a movimentação das lanchas — que, segundo ele, fazem barulho e geram ondas na superfície dos rios — causa o assoreamento das margens, movimenta os bancos de areia e afugenta a fauna local.
“A força das lanchas afastou o guará, o maguari, a garça preta… É muito raro encontrar essas aves na bacia, porque elas se espantaram e foram embora”, diz.
Os ribeirinhos também sentiram o sumiço da Ilha Camará, que chegou a ter uma área de 13,5 mil m² (o tamanho de quase dois campos de futebol) e ficava no entroncamento dos rios Cajutuba e Camará.
“Em finais de semana e feriados, os moradores pegavam suas canoas e iam até a ilha para descansar e se divertir”, relata Oeiras.
O presidente da Auremluc colheu quase 300 assinaturas entre os moradores da área e levou o caso às autoridades, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Polícia Civil.
Isso motivou uma investigação policial, que foi iniciada em 2021.
“Fizemos uma série de diligências e investigações para checar se algum crime ambiental havia sido cometido”, diz o delegado Dilermano Tavares, titular da Divisão Especializada em Meio Ambiente e Proteção Animal da Polícia Civil do Estado do Pará.
Como parte do trabalho, os responsáveis pelo caso pediram ajuda à Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
A ideia era que pesquisadores fizessem análises a partir de mapas e imagens aéreas para entender o que aconteceu com a Ilha Camará ao longo dos anos.
A tarefa ficou sob responsabilidade da professora Tabila Verena Leite, do curso de Engenharia Cartográfica e Agrimensura da universidade.
A especialista levantou imagens da Ilha Camará que foram capturadas por satélites entre 1985 e 2021.
A extensão desse território foi comparada a uma outra ilha sem nome (chamada no gráfico abaixo de ilha de referência) localizada nas proximidades, que apresentava características parecidas. Entre os critérios para a escolha, Leite levou em conta a proximidade das duas ilhas, o fato de elas serem arenosas e estarem numa área que sofre com os mesmos fenômenos de altas e baixas das marés.
“Nossa análise mostrou que, em 1985, a Ilha Camará tinha uma área de 13,5 mil m², enquanto a ilha sem denominação possuía 19,8 mil m²”, diz a pesquisadora.
Esses tamanhos foram se modificando com o passar dos anos. Em 1989, por exemplo, a Ilha Camará havia encolhido para 10,8 mil m², enquanto a ilha sem denominação cresceu para 21,6 mil m².
A partir de 2001, a Ilha Camará começou a minguar. Ela estava com 9,9 mil m².
Daí em diante, essa área entrou em declínio, segundo mostram os registros de 2003 (8,1 m²), 2004 (7,2 mil m²), 2007 (5,4 mil m²), 2009 (7,1 mil m²), 2012 (5,4 mil m²), 2013 (5,3 mil m²) e 2015 (2,6 mil m²).
A partir de 2016, a Ilha Camará literalmente sumiu do mapa.
Já a ilha sem denominação segue a aparecer nas imagens de satélite, apesar de sofrer variações importantes na sua área. Ela chegou a ter 26 mil m² em 1994 e estava com 12 mil m² cerca de duas décadas depois, em 2016.
As imagens levantadas pela pesquisadora a pedido da polícia vêm de satélites que operavam na década de 1980 — portanto, elas não são tão nítidas quanto as obtidas nos dias de hoje. As manchas brancas que aparecem em alguns trechos são nuvens que cobriam a região no momento de captura das fotos.
Leite explica que processos de erosão são naturais e ocorrem com frequência na Amazônia. “Eles são provocados pelas águas, que modificam o solo por meio de uma ação química e mecânica [o impacto das ondas, por exemplo]”, diz a professora.
“Na área costeira do Pará, é natural que ilhas apareçam e desapareçam pela influência das marés, dos sedimentos e dos rios”, acrescenta.
Mas esse processo natural explicaria o sumiço da Ilha Camará?
“Nessa ilha, alguma ação antrópica [causada pelo ser humano] parece ter acelerado esse processo”, responde Leite.
“Com a passagem dos barcos em alta velocidade, há a formação de ondas e marolas, que impactam o litoral.”
Como base para o argumento, a professora destaca o que aconteceu com a ilha sem denominação.
“Ela fica fora da rota das embarcações de praticagem e não sofre o impacto das ondas das lanchas”, observa ela, que assinou um laudo técnico sobre o caso, como solicitado pelos policiais.
O relatório foi concluído e remetido aos investigadores em meados de 2023.
A partir desta e de outras evidências — como investigações feitas no local, que observaram as mudanças na área e ouviram as pessoas que habitam as proximidades — a Polícia Civil do Pará indiciou a empresa de praticagem por crimes ambientais e por atuar sem a licença condizente com a atividade praticada.
“Nosso indiciamento reside nos artigos 40 e 60 da lei 9.605 de 1998”, diz o delegado Tavares.
Os artigos em questão falam sobre “causar dano direto ou indireto às unidades de conservação” e “construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes”.
O inquérito policial foi remetido ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA) e aguarda um parecer do Ministério Público do Estado, que pode seguir com a denúncia ou pedir mais esclarecimentos.
Procurado pela BBC News Brasil, o TJ-PA enviou um link para o site em que é possível fazer consultas públicas sobre os processos em andamento.
Segundo as informações, a causa tem um valor de R$ 40 milhões e a autuação foi recebida em 3 de abril de 2024.
Os últimos documentos foram disponibilizados no sistema de justiça paraense em meados de junho.
O MP-PA respondeu que “atualmente os autos não se encontram com vistas ao Ministério Público, tendo em vista a solicitação de finalização das diligências necessárias da Polícia Civil”.
“Após o retorno dos autos ao Ministério Público, serão adotadas as medidas necessárias e cabíveis ao caso”, complementa a nota.
CRÉDITO, AUREMLUC
Legenda da foto, O rio Cajutuba (foto) é uma das fontes de sobrevivência dos extrativistas que vivem na Resex Mestre Lucindo
O que diz a empresa
A reportagem entrou em contato com a Barra do Pará, a empresa que aparece como ré no processo.
Em nota, a advogada da companhia, Luciana Fonseca, diz que “os estudos que constam nos autos do inquérito policial e da ação civil pública são incompletos”.
“E eles não apresentam indicativos de nexo de causalidade entre a atividade da praticagem e demais usuários da Resex com os danos apontados”, complementa.
A empresa também usa como argumento uma nota técnica assinada pelo geólogo Amilcar Carvalho Mendes, especialista em sensoriamento remoto e pesquisador do Programa de Estudos Costeiros do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.
“Estamos falando de uma região dominada por estuários, com uma hidrodinâmica muito violenta”, diz ele.
“Nessas regiões, o surgimento e o desaparecimento de ilhas é regra, não exceção.”
Segundo o pesquisador, esses períodos de cheias e baixas, em que as águas do mar e do rio avançam e recuam, movimentam esses enormes bancos de areia.
Alguns deles, que permanecem num mesmo lugar por um tempo mais prolongado, ganham uma cobertura vegetal.
Seguindo essa linha de raciocínio, as mudanças cíclicas do ambiente podem gerar inundações — que “afogam” as raízes e matam as plantas — ou deslocar esses enormes de areia — que formavam as bases dessas ilhas.
Com isso, essas ilhas ganham ou perdem terreno, mudam de formato ou eventualmente até desaparecem (ou perdem a cobertura vegetal que aparecia nas imagens de satélite), como explica Mendes.
“Nessa região da costa, temos vários outros exemplos de ilhas que sumiram e reaparecem em intervalos de 30 ou 40 anos”, cita o pesquisador.
Como exemplos desses fenômenos, o geólogo cita casos parecidos, como a Ilha do Bombeiro (veja no mapa a seguir ), localizada no estuário do rio Marapanim, no Pará, e ilhotas identificadas nas baías dos rios Turiaçu e Piriá, no Maranhão.
“E em muitos desses lugares, não há trânsito de barcos para justificar o desaparecimento”, acrescenta ele.
Para o especialista do Museu Goeldi, esse é um processo natural de ambientes estuarinos e já foi observado não apenas no Brasil, mas também em regiões da Austrália e da costa Oeste da África.
“Quem estuda estuários precisa estar acostumado com mudanças o tempo inteiro”, diz.
“É claro que a ação antrópica pode acelerar esses processos de desaparecimento de ilhas, mas esse não parece ser o caso na situação específica da Ilha Camará”, afirma.
Sobre a questão de atuar numa área protegida e não ter a licença necessária, levantada pela Polícia Civil, a Barra do Pará respondeu que atuava na região dez anos antes da criação da Resex Mestre Lucindo.
“E o ICMBio não notificou a empresa para fazer qualquer tipo de alteração na sua atuação”, diz a nota.
“O Conselho Deliberativo da Resex só foi criado formalmente em 2018 e ainda precisou de mais tempo para ser instalado. Desde 2021, a empresa solicitou a anuência do ICMBio por meio de processo de pedido de autorização direta. O procedimento está em fase de definição das condicionantes, de acordo com as especificações que serão fixadas no plano de manejo da Resex”, complementa o texto.
A Barra do Pará ainda destaca os estudos que serviram de base para a criação da Resex Mestre Lucindo e diz que as ameaças citadas no texto não incluíam a praticagem.
“Diferente do que é colocado no inquérito que faz a acusação, o estudo do ICMBio aponta que a principal ameaça ao ecossistema local é a exploração irracional dos recursos, desmatamento e especulação imobiliária”, cita a nota
“Um trecho do estudo informa que ‘o principal ecossistema da região visitada, o manguezal, está ameaçado pela excessiva ação antrópica na exploração de caranguejos, na retirada da madeira nativa usada para a produção de currais e lenha, além da especulação imobiliária impulsionada pelo turismo’.”
Por fim, a empresa afirma ter vários programas de educação e meio ambiente, inclusive em parceria com as escolas da região, além de fazer campanhas de conscientização com os funcionários.
“Realizamos regularmente a capacitação dos pilotos quanto às normas e limites de velocidade das lanchas de praticagem, mantendo 24 horas uma base de monitoramento da trafegabilidade das lanchas no Rio Cajutuba.”
“Todas as lanchas da empresa possuem equipamentos que permitem em tempo real ou, se necessário, em dia e hora determinado, identificar a rota cumprida pela lancha, bem como a sua velocidade. O monitoramento está disponível ao ICMBio ou a qualquer órgão competente que julgue necessário a apuração dos fatos”, conclui a nota.
CRÉDITO, AUREMLUC
Legenda da foto, Especialistas veem necessidade de aumentar a fiscalização, mas conciliar diferentes atividades na região
Possível conciliação?
A BBC News Brasil também procurou o ICMBio, citado pelas partes envolvidas no caso.
Em nota, o instituto afirmou que “acompanha de perto a situação, ouviu todas as partes envolvidas e está ciente de que há comprovação de erosão na região devido à ação antrópica”.
Em março deste ano, o ICMBio fez uma reunião com a Barra do Pará e estabeleceu uma série de condições para permitir a circulação de lanchas pela região.
Entre as exigências, há o limite de 872 viagens ao ano (ou uma média de 2,3 viagens por dia), a apresentação de um plano de adequação para o manejo das áreas afetadas, a criação de ações preventivas ou compensatórias e a implementação de sistemas de monitoramento das embarcações com limites de velocidade permitida.
Questionada sobre esses pontos, a Barra do Pará diz que “está em tratativas com o órgão gestor [o ICMBio]” e aguarda posicionamentos e aprovações.
No caso específico do limite de viagens por ano, a empresa diz que já se mantém abaixo desse número, com uma média de 2,1 viagens (ida e volta) por dia.
Para Mendes, do Museu Goeldi, o caminho para solucionar o caso envolve o diálogo.
“Por um lado, temos a praticagem, que é um serviço fundamental. Sem esses profissionais, um navio pode encalhar nas baías e gerar um desastre ambiental de grandes proporções”, diz o pesquisador do Museu Goeldi.
“Por outro, não podemos prescindir da reserva extrativista, porque a função dela é justamente proteger os manguezais e todo o ecossistema da região”, acrescenta ele.
Já Leite, que assinou a nota usada pela Polícia Civil, pede por mais fiscalização e políticas públicas nas áreas protegidas.
“Precisamos de mais controle. Quem mora ali depende daquele habitat e da pesca para sobreviver”, diz a pesquisadora.
Oeiras afirma que, depois que o caso veio à tona, a situação das comunidades afetadas pela passagem das lanchas melhorou um pouco — mas ainda está longe do ideal.
“Até houve uma redução na velocidade das lanchas, mas há muito a ser modificado”, diz o presidente da associação. “Os práticos, por exemplo, têm horários apertados e muitas vezes precisam chegar até o navio em alto mar em meia hora. Para cumprir o prazo, eles aceleram as lanchas.”
Oeiras teme que as mudanças na região façam com que as pessoas desistam de morar ali.
“Muitos ribeirinhos estão precisando se mudar para áreas urbanas, como Belém, porque não conseguem mais sobreviver aqui”, diz.
“Esperamos que o processo sirva para reparar todos os extrativistas que sofreram e ainda sofrem com esse problema.”
bbcnews.com