Escolha pessoal ou estado paternalista? Realismo ou idealismo? Poucas condições médicas conseguem acender um debate tão acalorado.
Não posso resolver todas essas questões para você — tudo depende de suas opiniões pessoais sobre obesidade e do tipo de país em que você quer viver. Mas, ao pensar sobre elas, há algumas coisas a se considerar.
A obesidade é muito visível (ao contrário de outras condições médicas, como pressão alta) e há muito tempo vem acompanhada de um estigma de culpa e vergonha. A gula é um dos sete pecados capitais do cristianismo.
Mas vamos parar para pensar na semaglutida, que é vendida sob a marca Wegovy para perda de peso. Ela imita um hormônio que é liberado quando comemos e engana o cérebro — fazendo-o pensar que estamos satisfeitos e diminuindo nosso apetite para que comamos menos.
O que isso significa é que, ao mudar apenas um hormônio, “de repente você muda todo o seu relacionamento com a comida”, diz o professor Giles Yeo, que estuda obesidade na universidade de Cambridge.
E isso tem muitas implicações na maneira como pensamos a obesidade.
Isso também significa que para muitas pessoas acima do peso existe uma “deficiência hormonal”, argumenta Yeo, que as deixa biologicamente mais famintas e propensas a ganhar mais peso do que alguém que é naturalmente magro.
Isso provavelmente era uma vantagem biolófica há 100 anos ou mais, quando a comida era menos abundante — levando as pessoas a consumir mais calorias quando elas estão disponíveis, porque poderia haver escassez de comida no futuro.
Nossos genes não mudaram profundamente em um século, mas o mundo em que vivemos tornou mais fácil ganhar peso com o surgimento de alimentos baratos e ricos em calorias, tamanhos de porções crescentes e cidades onde é mais fácil dirigir do que caminhar ou andar de bicicleta.
Essas mudanças se aceleraram na segunda metade do século 20, dando origem ao que os cientistas chamam de “ambiente obesogênico” — ou seja, que incentiva as pessoas a comer de forma pouco saudável e não fazer exercícios suficientes.
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No Reino Unido, um em cada quatro adultos é obeso.
O Wegovy pode ajudar as pessoas a perder cerca de 15% do peso corporal inicial antes que os benefícios se estabilizem.
Apesar de ser constantemente rotulado como um “remédio para emagrecer”, isso pode levar alguém que pesa 120 kg a pesar 107 kg. Isso melhora a saúde em várias outras áreas, como risco de ataque cardíaco, apneia do sono e diabetes do tipo 2.
Mas Margaret McCartney, médica geral em Glasgow, adverte: “Se continuarmos colocando as pessoas em um ambiente obesogênico, só aumentaremos a necessidade desses medicamentos para sempre”.
No momento, o sistema de saúde do Reino Unido está planejando prescrever os medicamentos apenas por dois anos devido ao custo. As pesquisas mostram que quando se para de usar o remédio, o apetite volta e o peso sobe novamente.
“Minha grande preocupação é que estamos olhando para a solução errada para impedir que as pessoas fiquem acima do peso”, diz McCartney.
Sabemos que o ambiente obesogênico começa cedo. Uma em cada cinco crianças já está acima do peso ou obesa quando começa a escola.
E sabemos que isso atinge comunidades mais pobres (nas quais 36% dos adultos na Inglaterra são obesos) mais forte do que as mais ricas (onde o número é de 20%), em parte devido à falta de disponibilidade de alimentos baratos e saudáveis.
Mas existe uma tensão no debate sobre melhorar a saúde pública e a importância das liberdades civis. Você pode dirigir, mas precisa usar cinto de segurança; pode fumar, mas com impostos mais altos e restrições de idade e local.
No caso da obesidade, há mais coisas a se considerar.
Você acha que também deveríamos enfrentar o ambiente obesogênico ou apenas tratar as pessoas quando a obesidade começa a prejudicar sua saúde? O governo deveria ser mais duro com a indústria alimentícia, decidindo sobre o que podemos comprar e comer?
Deveríamos ser encorajados a seguir o exemplo do Japão (um país rico com baixa obesidade) e ter refeições menores baseadas em arroz, vegetais e peixe? Ou deveríamos estabelecer limites de calorias em comidas congeladas e barras de chocolate?
E quanto aos impostos sobre açúcar ou junk food (comidas não-saudáveis, como hambúrgueres e pizza)? E quanto a proibições sobre onde alimentos muito calóricos podem ser vendidos ou anunciados?
Yeo diz que se quisermos ver mudanças, então “teremos que aceitar restrições em algum ponto, teremos que perder algumas liberdades”. Mas ele não acha que a sociedade debateu isso ainda, a ponto de poder decidir.
Na Inglaterra, houve planos oficiais de governo contra a obesidade — 14 deles ao longo de três décadas. Mas os resultados foram tímidos.
Os planos incluíram campanhas que estimulam o consumo de frutas e vegetais cinco vezes por dia, a rotulagem de alimentos para destacar o conteúdo calórico, restrições à publicidade de alimentos não-saudáveis para crianças e acordos voluntários com fabricantes para mudar alguns alimentos.
Embora haja sinais preliminares de que a obesidade infantil na Inglaterra pode estar começando a cair, nenhuma dessas medidas alterou suficientemente a dieta da população para virar o jogo contra a obesidade.
Há uma corrente de pensamento que diz que os remédios para perda de peso podem até ser o evento que vai despertar a mudança nas dietas.
“As empresas alimentícias lucram, é isso que elas querem. O único raio de esperança que eu tenho é que os medicamentos para perda de peso ajudem muitas pessoas a resistir a comprar fast foods (lanches não-saudáveis). Será que isso pode ser o começo da mudança no ambiente alimentar?” pergunta o professor Naveed Sattar, da universidade de Glasgow.
À medida que os medicamentos para perda de peso se tornam muito mais disponíveis, decidir como eles serão usados e como isso se encaixa em nossa abordagem mais ampla à obesidade precisará ser abordado em breve.
No momento, estamos apenas começando. Há uma oferta limitada desses medicamentos e, devido ao seu alto custo, eles estão disponíveis no sistema público de saúde britânico para relativamente poucas pessoas e por um curto período.
Espera-se que isso mude drasticamente na próxima década. Novos medicamentos, como a tirzepatida, estão vindo, e as empresas farmacêuticas perderão suas proteções legais (as patentes), o que significa que outras empresas poderão fabricar suas próprias versões mais baratas.
Quando começaram a ser comercializados, os medicamentos para baixar a pressão arterial ou as estatinas para reduzir o colesterol também eram caros e dados a poucos. Hoje, cerca de oito milhões de pessoas no Reino Unido estão tomando esses medicamentos.
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Stephen O’Rahilly, diretor da Unidade de Doenças Metabólicas do Conselho de Pesquisas Médicas (MRC, na sigla em inglês), diz que a pressão arterial foi controlada com o uso de uma combinação de medicamentos e mudanças sociais: “Fizemos exames de pressão arterial, aconselhamos sobre usar menos sódio [sal] nos alimentos e desenvolvemos medicamentos para pressão arterial baratos, seguros e eficazes.”
Segundo ele, é isso que precisa acontecer com a obesidade.
Ainda não está claro quantos de nós acabarão tomando medicamentos para perda de peso. Serão apenas os que são muito obesos e correm risco médico? Ou se tornará preventivo para impedir que as pessoas se tornem obesas?
Por quanto tempo as pessoas devem tomar medicamentos para perda de peso? Deve ser para o resto da vida? Quão amplamente eles devem ser usados em crianças? Faz diferença se as pessoas que usam os medicamentos ainda estiverem comendo junk food, mas em porções menores?
Com que rapidez os medicamentos para perda de peso devem ser usados quando ainda não sabemos os efeitos colaterais do uso a longo prazo? É correto que pessoas saudáveis tomem esses remédios apenas por motivos estéticos? A ausência deles na rede pública pode aumentar a disparidade de obesidade e saúde entre ricos e pobres?
São muitas perguntas — mas, até agora, há poucas respostas claras.
“Não sei onde isso vai parar – estamos em uma viagem incerta”, diz Naveed Sattar.
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