O furacão Milton está se aproximando dos Estados Unidos e deve atingir a Flórida na noite desta quarta-feira (09) no horário local.
Ele foi classificado como de categoria 5 — a mais grave. E, segundo o presidente dos EUA, Joe Biden, pode ser “o pior furacão dos últimos 100 anos”.
Alimentados pelo aquecimento das águas oceânicas, os furacões costumam ser chamados de máquinas a vapor da natureza.
Ao viajar acima dos oceanos, eles transformam o calor dos mares em imensas quantidades de energia cinética. Os furacões arrasam ilhas e inundam cidades costeiras, causando danos que exigem meses de trabalho de reparação.
Com as temperaturas dos oceanos quebrando todos os recordes, as reações desses “motores” são proporcionais, atravessando os mares em trajetos diferentes, reduzindo sua velocidade e passando a ser menos previsíveis e mais perigosos.
Com isso, surgiu uma corrida para entender exatamente como os furacões estão reescrevendo as regras e padrões observados anteriormente. A esperança é aprender como podemos nos adaptar a essas mudanças.
Existe um ciclo sazonal distinto dos furacões no Oceano Atlântico: nenhum ou muito poucos no verão do hemisfério sul e o pico, em setembro.
Com as mudanças climáticas, seria esperado um início antecipado e mais forte da estação dos furacões, segundo o cientista climático e atmosférico James Kossin, aposentado da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês).
“Os furacões apenas reagem ao ambiente onde são encontrados”, afirma Kossin. “Se você fizer com que o ambiente em junho se pareça com o que seria normal em agosto ou setembro, os furacões simplesmente irão se comportar como se fosse agosto ou setembro. Eles não têm calendário.”
As condições extraordinariamente quentes dos oceanos que estamos observando atualmente são causadas pelas mudanças climáticas, embora haja outros fatores que tornam esta estação especialmente ativa. Um deles é a atual transição entre os fenômenos El Niño e La Niña, que tende a aumentar a atividade das tempestades.
“Em um clima em aquecimento, o esperado seria que as águas atingissem a temperatura necessária para [a formação dos] furacões mais cedo ao longo do ano”, afirma a professora Kristen Corbosiero, do Departamento de Ciências Ambientais e Atmosféricas da Universidade de Albany, em Nova York, nos Estados Unidos.
“Por isso, certamente será possível observar estações de furacões mais longas, surgindo mais cedo”, segundo ela.
O início intenso e precoce da estação de 2024, com o furacão Beryl, está de acordo com o que os cientistas climáticos podem esperar com as mudanças climáticas. Mas é cedo demais para observar alterações consistentes da estação.
“Ainda não [é] algo que apareça claramente nos dados”, afirma a brasileira Suzana Camargo, professora de física climática e oceânica da Universidade Columbia, nos Estados Unidos.
Uma das tempestades mais fortes a se formar recentemente no Oceano Atlântico enfrentou condições que deveriam ter evitado a formação de furacões, segundo o professor de pesquisa da terra e meio ambiente Hugh Willoughby, da Universidade Internacional da Flórida, nos Estados Unidos.
Em setembro de 2023, no pico da estação no Oceano Atlântico, o furacão Lee se intensificou rapidamente, até se tornar uma tempestade categoria 5. Era época de El Niño, que geralmente tem efeito sufocante sobre as tempestades no Oceano Atlântico, devido ao aumento do vento cortante e da estabilidade atmosférica.
“O vento cortante é a morte para os furacões”, segundo Willoughby.
O vento cortante vertical é a mudança da velocidade e da direção dos ventos em diferentes alturas. O alto vento cortante prejudica a estrutura dos furacões.
“Imagine a turbina de um motor”, explica Willoughby. “O vento cortante elimina algumas das suas pás.”
Por isso, a formação de um furacão categoria 5 como o Lee, apesar do considerável vento cortante, foi uma “surpresa desagradável”.
O extraordinário aquecimento dos oceanos em setembro de 2023 pode ter, de alguma forma, superado a influência do vento cortante, segundo Willoughby, mas não se sabe muito claramente por quê. “Nós, teóricos, precisamos pensar a respeito.”
A ampla maioria dos furacões que se formam no Oceano Atlântico não atinge seu potencial, segundo Willoughby.
Nas condições relativamente restritas da bacia do Atlântico, as tempestades, muitas vezes, chegam a terra antes de atingirem o pico da sua intensidade ou caem em alto vento cortante, que ajuda a dissipá-las.
“Mas, quando tudo dá certo, ela irá se intensificar rapidamente e atingir seu potencial de intensidade máxima, que é definido pela temperatura da superfície do oceano abaixo do furacão”, explica Willoughby.
Existe “uma quantidade absurda de evidências” de que a velocidade da intensificação aumenta quando o oceano fica mais quente, fornecendo mais combustível para as tempestades, segundo Kossin. “Tudo se resume na quantidade de combustível disponível.”
“É parecido com trocar os jatos em um carburador”, explica ele. “Se você mudar os jatos para permitir que mais combustível entre e se misture com o ar, você irá conseguir mais potência. Você poderá ir de zero a 60 com mais rapidez. Esta é a sua intensificação.”
O pico de intensidade dos furacões também vem aumentando com as mudanças climáticas.
Em um estudo de 2020, Kossin concluiu que a intensidade das tempestades entre 1979 e 2017 aumentou em cerca de 6% por década. Agora, a possibilidade de que as tempestades atinjam o limite de 180 km/h – o mínimo para que sejam classificadas como grandes furacões – é 25% maior do que 40 anos atrás.
De forma geral, a proporção de ciclones tropicais de categoria 3 ou mais tende a aumentar, segundo o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).
“A temperatura dos oceanos define a intensidade máxima que o furacão pode alcançar”, afirma Willoughby.
Em maio de 2024, uma análise realizada pela BBC concluiu que a temperatura dos oceanos quebrou recordes todos os dias do ano anterior.
Redução da velocidade
Apesar do aumento da velocidade dos ventos no interior dos furacões, o seu movimento ao longo do trajeto sobre o oceano e a terra está se tornando mais lento.
Em um estudo de 2018, Kossin concluiu que os furacões próximos dos Estados Unidos tiveram sua velocidade reduzida em cerca de 17% desde o início do século 20. E os ciclones tropicais no oeste do Pacífico Norte tiveram velocidade reduzida em até 20%.
Acredita-se que o movimento mais lento seja causado pelos padrões irregulares do aquecimento global causado pelas mudanças climáticas.
O Ártico está se aquecendo quase quatro vezes mais rápido que o restante do planeta. Com isso, a diferença de temperatura entre o Ártico e os trópicos está diminuindo.
“É esse gradiente de temperatura que rege os ventos”, segundo Kossin. “Quanto mais forte o gradiente, mais fortes são os ventos.”
Você pode imaginar os furacões como uma rolha em um curso d’água, explica o cientista. “Ela vai para onde o vento a levar.”
E, se você diminuir a velocidade do vento, irá reduzir a velocidade das tempestades durante seu movimento ao longo do trajeto.
Furacões que se movem mais lentamente têm mais tempo para lançar chuva em um dado local. É como a diferença entre regar um canteiro de flores passando rapidamente a mangueira sobre ele ou mantendo a mangueira no mesmo lugar, por mais tempo.
Uma tempestade categoria 1 particularmente lenta foi o furacão Debby. A previsão era que ele trouxesse até 76 cm de chuva e enchentes catastróficas durante sua passagem pelo litoral do Golfo do México na Flórida no dia 5 de agosto de 2024, antes de atingir os Estados americanos da Geórgia e da Carolina do Sul.
“O que realmente irá trazer muita chuva é a redução da velocidade dessas tempestades”, segundo Kossin. “Quando elas ficam paradas – ou estacionadas, como chamamos – é simplesmente devastador, porque você fica inundado por dias.”
Os danos causados pelo vento também aumentam com a sua duração. Quanto mais tempo o vento soprar contra as construções, maior a probabilidade de derrubá-las.
“É muito ruim ter um furacão passando por muito tempo”, explica Kossin. “Você quer que ele saia da vizinhança.”
O ar quente também pode reter mais umidade – cerca de 7% a mais para cada grau Celsius. Ou seja, os furacões podem ficar ainda mais úmidos.
Com as mudanças climáticas aumentando as temperaturas, esse aumento da umidade é significativo. Mas seu efeito é pequeno, em comparação com a diferença causada por um furacão que fica estacionado sobre uma região, segundo Kossin.
Por isso, o cientista afirma que considera a redução da velocidade como a mais perigosa de todas as mudanças de comportamento dos furacões causadas pelas mudanças climáticas. “É realmente um grande problema.”
Além das temperaturas muito altas na camada superior do oceano, tudo fica pior quando as camadas mais baixas também começam a se aquecer.
Se a camada quente superior for estreita, quando o furacão passa sobre ela, a água mais fria de baixo se agita e se mistura, segundo Corbosiero, resfriando a água da superfície.
“Mas, se aquela água quente se estender até uma camada mais profunda durante a passagem do furacão, a água [da superfície] ainda estará morna depois de agitada”, explica a professora. Isso permite que a tempestade mantenha sua força.
Estas condições estão sendo observadas no Oceano Atlântico.
“Além das águas mornas na superfície, também temos agora águas mornas muito profundas”, ela conta. “Por isso, [os furacões] conseguem se intensificar com mais rapidez e não param de se intensificar, pois não estão encontrando água fria.”
Para Kossin, quando examinamos a mudança de comportamento dos furacões, existe o risco de limitar nossa visão com o foco na sua potência e na intensificação.
“As pessoas não falam o suficiente sobre o trajeto [dos furacões]”, explica ele. “E acho que isso é muito mais perigoso.”
Em um documento de 2014, Kossin e seus colegas concluíram que, no hemisfério norte, as tempestades haviam se movido para o norte em 53 km por década. E, no hemisfério sul, elas haviam se movido para o sul em 62 km por década.
Ao todo, os furacões se moveram cerca de um grau de latitude de distância dos trópicos por década. Isso poderá expor certas comunidades a tempestades extremas, em regiões ainda não acostumadas com elas.
Kossin destaca a migração dos ciclones tropicais no oeste do Pacífico. Ele detectou leve redução do risco em torno das Filipinas e aumento para o norte, perto do Japão.
“As Filipinas sofrem [ciclones] todo o tempo e, por isso, estão meio que adaptadas a eles”, explica Kossin.
“O Japão tem incidência, mas não todo o tempo. E, agora, o que dizemos é que eles irão começar a observar a chegada de tempestades mais fortes do que antes. O efeito sobre o risco realmente é substancial.”
As mudanças climáticas também estão alterando os padrões de vento cortante sobre o Oceano Atlântico.
“Existe um padrão de vento cortante que se parece com dois alvos”, explica Kossin.
Um alvo alongado fica na Região de Desenvolvimento Principal (MDR, na sigla em inglês), uma faixa dos trópicos atravessada pelos furacões, onde eles se intensificam. O segundo alvo fica ao lado do litoral leste da Flórida e se estende até as Carolinas do Norte e do Sul.
“Estes dois [alvos] têm uma espécie de efeito pendular”, segundo Kossin. “Quando o vento cortante é alto na MDR, ele tende a ser baixo no litoral e vice-versa.”
O vento cortante na MDR está relacionado às temperaturas da superfície do mar. Águas mais quentes naquela região geralmente indicam menos vento cortante.
Por outro lado, isso também significa maior vento cortante no litoral americano, resultando em um escudo de ventos desordenados que age como “barreira de intensificação”, como descobriu Kossin, em 2017.
Esta barreira, infelizmente, não ajuda a enfraquecer as tempestades que atingem as comunidades do Caribe. Mas ela oferece alguma proteção aos Estados Unidos.
“Por isso, quando as condições conduzem muitas tempestades que se formam e se intensificam na MDR, à medida que se aproximam dos Estados Unidos, elas encontram esse vento cortante mais alto, que tende a enfraquecê-las”, explica Kossin. “Felizmente, por enquanto.”
Mas essa barreira protetora não parece ser permanente. Em um estudo realizado por James Kossin e Suzana Camargo, com seus colegas da Universidade Columbia, os pesquisadores analisaram o que o futuro poderá reservar para essa barreira.
“Elas nunca são boas. Poderiam ter sido boas. Poderíamos ter concluído que as mudanças climáticas aumentam a barreira. Mas não. Elas prejudicam.”
Diminuição da poluição por sulfato
Acredita-se que a redução da poluição do ar na Europa e nos Estados Unidos desde os anos 1970 tenha trazido uma consequência inesperada: o aquecimento ainda maior do ar sobre o Oceano Atlântico.
Isso porque todo o CO2 produzido pela poluição continua na atmosfera durante centenas de anos, mas outros poluentes têm vida mais curta, ou seja, somem depois de um tempo.
Parte deles – os sulfatos – na verdade causavam um efeito de resfriamento.
Até então, os altos níveis de poluentes de sulfato das indústrias se misturavam sobre a bacia do Atlântico, impedindo que a luz do sol atingisse o oceano. E este processo “tem um efeito de resfriamento”, segundo James Kossin.
Então, enquanto o CO2 continua se acumulando e aquecendo o planeta, a diminução dos sulfatos gerou uma perda desse efeito de resfriamento do poluente.
As mudanças climáticas vêm avançando muito desde a revolução industrial, “mas nós vínhamos suprimindo aquele aquecimento com a poluição por sulfato”, explica Kossin. E, depois da notável redução da poluição industrial, este efeito de resfriamento diminuiu.
Os cientistas ainda pesquisam até que ponto o smog industrial (essa neblina poluída) pode ter influenciado as temperaturas.
Hugh Willoughby, por exemplo, acredita que o impacto tenha sido pequeno e que outros fatores desempenhem papel mais importante sobre a temperatura dos oceanos.
Mas estudos demonstraram que a influência do smog industrial sobre a temperatura dos mares vem sendo menosprezada. E os efeitos da redução da poluição na China potencialmente contribuem para o surgimento “bolhas de aquecimento” periódicas no nordeste do Oceano Pacífico.
Existem também outras formas que levam os furacões a se tornarem mais extremos, causando maiores riscos.
“Além de tudo o que estamos comentando, o nível dos mares também está subindo”, relembra Kossin, “e, como os furacões ficam mais perigosos quando se movem para o litoral, é preciso sempre acrescentar esta questão ao problema.”
Um estudo concluiu que as fortes ondas de tempestade causadas pelos furacões no Caribe, no México e nos Estados Unidos cresceram em 80% desde 1979 – e, globalmente, as ondas de tempestade também estão ficando cerca de 3% mais altas por década.
Mas a tecnologia pode ajudar a salvar vidas nas comunidades estabelecidas onde os furacões chegam a terra. E mudanças de prazo mais longo também podem reduzir a perda de vidas e propriedades.
“Uma das questões em que eu me concentraria é [a limitação de] novas construções nas regiões litorâneas”, explica Suzana Camargo.
“As políticas que geram enormes incorporações imobiliárias nas regiões litorâneas não deveriam ter continuidade. O aumento das pessoas e da infraestrutura em regiões que estão tipicamente no trajeto dos furacões gera maiores impactos”, explica a professora.
Para quem mora nos trajetos dos furacões, realizar grandes adaptações das construções e incorporações pode ajudar a preservar as casas e a infraestrutura. E sistemas confiáveis de alerta precoce podem oferecer um caminho para salvar vidas com mais segurança.
Soluções naturais também podem ajudar a reforçar a segurança das ilhas e áreas litorâneas, como o plantio de grama para fixar as encostas e a recuperação dos leitos de ostras perdidos.
Para Kossin, “a adaptação é muito importante e, você sabe, pode acabar se tornando o mais importante”.
“Porque não podemos desligar rapidamente as mudanças climáticas e ter tudo de volta como era antes. Existe uma inércia no sistema que realmente não podemos desprezar. Por isso, a adaptação será uma grande parte do processo.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
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